IDENTIFICAÇÃO DE
ESTEREÓTIPOS CONTIDOS NA OBRA: CASA GRANDE E SENZALA E NA COLEÇÃO DE OBRAS
DIDÁTICAS QUE COMPÕEM O PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA
Introdução
Este estudo visa à desmistificação de
estereótipos relacionados à visão sobre a população negra, criados na obra:
“Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre [2006], por este livro difundir a
ideia de democracia racial entre brancos, negros e indígenas, isto é, uma
relação harmônica entre as três raças na constituição do que hoje conhecemos
por Brasil. Paralelamente, haverá a problematização e comparação com as
informações transmitidas por meio das obras didáticas do Projeto Araribá
História [2006], voltadas aos alunos de 5ª até 8ª séries. Trata-se de um
conjunto de obras didáticas produzidas com recursos do Ministério da Educação e
foram distribuídas para alunos de escolas públicas por meio do Programa
Nacional do Livro Didático [PNLD], nos anos de 2008, 2009 e 2010.
Este tema surgiu com a finalidade de mostrar
que, cativos também são agentes históricos e não vivem apenas para o trabalho
ou mesmo para o castigo, pois, esta visão tornou-se constante em muitas
coleções didáticas, ao observarmos as imagens e textos que retratam a época da
escravidão negra no país, como no conjunto de livros didáticos aqui analisados.
Tamanha recorrência impede que haja, por parte dos estudantes, a
conscientização sobre a figura do negro como um agente histórico. Por esta
razão é citado o trabalho de Sílvia Lara [1988], pois esta apresenta a
escravidão como um processo de interação social, em que, em determinados
momentos, o senhor deveria ceder, a fim de que a escravaria não se rebelasse. O
recorte temporal analisado está situado entre os séculos XVIII e XIX.
Além disso, será mencionado o trabalho de
Circe Bittencourt [2008], por esta afirmar sobre o sentido envolto na suposta
ausência dos conflitos sociais nos livros didáticos e de Emília Viotti [2007],
por esta historiadora [falecida] apresentar algumas situações de conflito no
regime escravagista brasileiro.
A
construção do mito da democracia racial e seus objetivos
Desde o período imperial até a transição para
o regime republicano, as práticas de ensino visavam formar indivíduos
patrióticos, por meio da exaltação de datas e heróis. Tanto que, com a criação
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [IHGB], houve a criação de
pesquisas visando forjar uma identidade nacional, com o intuito de guiar o país
ao progresso. Com isso, começa-se a reconhecer as contribuições das três raças,
mas, sempre de forma hierárquica, tendo maior valor o branco [português]. Na
década de 1930, Gilberto Freyre criou a obra: “Casa Grande e Senzala”, a qual
foi vista como inovadora por uma parte da intelectualidade da época, por
mostrar a miscigenação como algo positivo e harmônico, diferente de épocas
anteriores, em que a mestiçagem era lembrada por neodarwinistas de forma
negativa e observada como um dos aspectos para o atraso social e econômico do
Brasil, frente às potências europeias. Essa ideia foi tão forte que se tornou
base para o discurso em defesa do branqueamento da nação, por meio de políticas
de fomento da imigração. Em sua obra, Freyre ilustra a contribuição das três
raças: branca, indígena e negra para a formação da nação, de forma romantizada,
como se fossem raros os casos de agressão física, ao usar como exemplos os
escravos domésticos, fazendo poucas Referências aos cativos que atuavam em
atividades laborais no campo.
É possível pensar que, o ideal de uma
democracia racial deveria ter causado muita agitação na época em que o livro
foi lançado [1933], já que os ideais de pureza racial estavam em pauta na
década de 1930, no sentido em que os regimes totalitários ganhavam força [como
o nazismo]. Todavia, os pensamentos freyrianos foram contestados por
intelectuais como Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes [falecido],
dentre outros autores. Como exemplo, temos a crítica de Maria Alice Medeiros:
“[...] não desenvolve em seu trabalho uma
perspectiva histórica, de tal modo que o processo de colonização do país fica
reduzido, em muitas passagens, a imagens abstratas e estereotipadas da
realidade retratada. Ao desprender os aspectos culturais [e nestes, os
psicológicos] da sua realidade histórica correspondente. Freyre está esvaziando
esta categoria de análise, transformando-as num instrumento descritivo apenas”.
[MEDEIROS, 1980, p. 224]
Com base na crítica acima, podemos nos
lembrar de Circe Bittencourt [2008], pois, em seu artigo, ela menciona
enfaticamente a questão da formação da identidade nacional, trabalhada nos
livros didáticos, como uma realidade homogênea, sem conflitos de toda ordem,
dentre eles o racial. Ela aponta a ideia de que essa suposta manutenção da ideologia
de democracia racial é uma forma de manter a estrutura social, ou seja, impedir
que os excluídos socialmente tivessem consciência dessa situação e promovessem
mudanças significativas na sociedade brasileira.
No primeiro capítulo de Casa Grande e
Senzala, Freyre também menciona a aceitação de todas as raças no seio do
catolicismo, no entanto, não menciona que, em determinada época, houve divisão
espacial entre igrejas de negros, como também as voltadas somente para os
brancos. Além disso, pode-se usar como crítica a não referência aos
rituais afros, existentes no interior das irmandades, que atuavam em plena
escravidão brasileira.
Dentre as demais críticas feitas à “Casa
Grande e Senzala”, está à abordagem quase que exclusivamente dos escravos domésticos,
relacionando-se com seus senhores, sendo que, essa interatividade era menos
violenta do que a existente entre o fazendeiro e os trabalhadores da lavoura.
Ao pensar na construção do mito da democracia racial, é possível perceber nesta
obra que as três raças contribuem ao seu modo, a fim de constituir a nação
brasileira. Porém, esse mito contraria a existência do preconceito racial ou
étnico, sem falar que essa contribuição é mostrada de forma hierarquizada, pois
a imagem do europeu surge como portador do progresso, enquanto o negro e o
indígena são observados como força de trabalho. Sem esquecermo-nos de que, na
obra de Freyre, as mulheres negras são altamente erotizadas. Um fato que
reflete certo machismo, em decorrência do ambiente patriarcal em que Freyre
retrata e, no qual, ele formou-se. De acordo com Fernando Henrique Cardoso
[2003]: “no fundo, a história que ele conta era a história dos brasileiros, ou
pelo menos a elite que lia e escrevia sobre o Brasil, queria ouvir”, ou seja,
tal crítica ilustra a influência do ambiente em que Freyre se desenvolveu como
um membro de uma família de senhores de engenho do Recife.
Interatividade
entre oprimidos e opressores
Ao iniciar a análise do conjunto de livros
didáticos do Projeto Araribá História é evidenciado que há grande generalização
de fatos, como se no contexto histórico, não houvesse exceções. Por exemplo,
está escrito na p. 194, no livro voltado à sexta-série, que os escravos
cuidavam dos serviços mais penosos no engenho açucareiro, todavia, na época
escravização, de origem africana, existia o chamado mestre de açúcar, um
trabalhador altamente especializado na prática de refino desse produto
alimentício e que, poderia ser um cativo. Tal fato era mais conveniente ao
senhor, pois, por ser difícil de encontrar um bom mestre de açúcar, o
latifundiário poderia manter sob seu domínio esse profissional. Todavia, houve
casos em que o escravo, ao executar essa função altamente técnica, recebia
alguma remuneração, podendo comprar sua própria Carta de Alforria.
Na p. 47, do livro voltado para oitava-série
está escrito: “Em São Paulo, os ex-escravos, a maior parte sem qualificação
profissional e tendo que concorrer com os trabalhadores imigrantes, foram
obrigados a aceitar os trabalhos mais pesados e mal remunerados”, o que cria a
ilusão de que todos os imigrantes, ao chegarem ao Brasil, já tinham alguma
especialização profissional. Na verdade, muitos imigrantes acabavam por
adquirir alguma habilidade mais refinada em território brasileiro, ao serem
amparados pelas comunidades já estabelecidas. Além disso, no mesmo livro
didático, na p. 45, pode-se refletir sobre a frase: “Ela [escravidão] seria
lenta, gradual e segura, ou seja, sem riscos para os privilégios dos grupos
dominantes”. Essa frase, que lembra mais o período de abertura política do
governo Geisel [1974-79], não encontra sustentação naquele período, sendo que,
após a assinatura da Lei Áurea, não houve indenização aos senhores de escravos,
que no fim saíram prejudicados financeiramente. Torna-se necessário enfatizar
que, até 1888, o cativo era visto como um investimento muito caro e, devido à
não compensação dessa perda de mão de obra, os senhores de escravos, em
represália, passaram a exigir o fim do império, tornando-se os republicanos do
13 de maio.
Nota-se também uma grande recorrência de
figuras feitas por Debret, sempre caracterizando o negro como um ambulante nas
cidades, em ambiente doméstico ou mesmo recebendo castigos físicos, ilustrando
os livros de sexta-série [p. 201 e 208] e sétima-série [p. 151, 154, 155 e
156], chegando a existir repetição de uma imagem, a qual mostra o interior de
uma residência, em que uma senhora está cercada por negros. Torna-se importante
que existam mais pesquisas imagéticas, para desconstruir os estereótipos voltados
exclusivamente ao castigo físico ou ao trabalho, ilustrados por este artista,
conforme é possível constatar a seguir:
Obra: Feitor açoitando negro, de
Jean-Baptiste Debret, 1834-1839.
Fonte: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Disponível em: Projeto Araribá História, 2006, 6ª série, p. 201. Obra pictórica
encontra-se recortada nas laterais direita e esquerda para reforçar a questão
do martírio nesse livro didático.
Obra: O jantar no Brasil, de Jean-Baptiste
Debret, 1834-1839.
Fonte: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Disponível em: Projeto Araribá História, 2006, 6ª série, p. 201. Cena
hierarquizada, na qual os trabalhadores domésticos encontram-se em pé. Na
coleção analisada há um recorte do lado direito, que retira da cena o cativo
próximo à porta.
Há outro aspecto que merece ser
desmistificado. Trata-se da alimentação pouco diversificada, concedida pelos
senhores [Projeto Araribá História, 2006, 6ª série, p. 196], pois, conforme
trecho escrito por Silva Lara percebe-se que, dependendo da interatividade que
o cativo possuía com seu senhor, este poderia conceder-lhe uma parte da
produção e até um pedaço de terra para que o escravo pudesse plantar os gêneros
que desejasse, para a própria subsistência, ou mesmo, para comercializar o
excedente e ter recursos para contratar ajudantes:
“Antônio, de nação Angola, escravo de Paula
Maria Ribeiro, era casado com uma mulher forra. Como tivemos oportunidade de
mencionar, ele tinha, em função de um acordo com sua ex-senhora, o usufruto da
colheita e moagem de um canavial e de outras plantações, fruto de seu trabalho,
trabalho da mulher e de alguns alugados. Trata-se, portanto, de um escravo com
algumas posses não apenas em termos do valor das colheitas, mas também por
dispor de alugados a seu serviço” [LARA, 1988, p. 227].
No livro de sexta-série há grande exaltação
das torturas físicas [p.198], porém, Sílvia Lara expõe um fato que contraria
essa regra, mostrando que a escravidão negra não era resolvida apenas na
chibata, pois, de acordo com seus estudos, ela encontrou um caso de um cativo
que se recusou a cortar lenha para sua senhora, alegando que possuía um
problema de saúde. Assim, o caso foi parar na justiça e a senhora teve o
direito de ser ressarcida e recebeu o dinheiro gasto na compra deste escravo
[LARA, 1988, p. 192].
Deve-se mencionar também que, na coleção
didática, é mostrada a figura do branco como um ser com bom ou exorbitante
poder aquisitivo, mas, deveria mencionar também o fato de existir uma mão de
obra branca e pobre. Ademais, deve-se lembrar de que essa força de trabalho era
discriminada, pois, num regime escravagista como o do Brasil, dificilmente
essas pessoas conseguiam alguma ocupação remunerada, como lembra Laura de M. e
Souza, na obra: “Os Desclassificados do Ouro”. Além disso, Viotti também expõe
um pouco essa questão, ao mencionar a rede de sociabilidade que surge entre os
excluídos sociais: “[...] os negros e os brancos das classes mais inferiores,
igualmente dependentes do paternalismo da elite branca, podiam viver na [...] solidariedade
criada pela pobreza compartilhada, pelo desamparo comum e pela dependência em
relação à elite branca” [VIOTTI, 2007, p. 382]. Essas informações são
primordiais, com o fim de descaracterizar a ideia de que a pobreza seja
determinada apenas pela cor da pele. Assim como houve casos, no período da
escravidão, em que negros forros, com intuito de ascender socialmente,
tornaram-se proprietários de escravos [LARA, 1988]. Outro ponto que merece ser
enfatizado é o fato de terem existidos processos judiciais de escravos, contra
as agressões físicas feitas por seus senhores [LARA, 1988], aspectos que nos
mostram que, apesar da violência imposta pela escravidão no que mais tarde veio
a ser conhecido por Brasil, houve casos de exceções, em que cativos ou ex-escravos
foram agentes históricos perante a realidade que os cercavam.
Considerações
finais
O conhecimento, difundido na coleção didática
analisada, não é desenvolvido numa perspectiva histórica, ou seja, marcada não
só por continuidade, mas por situações de rupturas. Trata-se de um saber
divulgado numa linguagem simples, o que permite perceber que as informações são
transmitidas como se fosse uma verdade universal.
Há a criação de um modelo generalizante, no
qual as exceções praticamente não são lembradas. Fato que deve ser mudado, para
que o aluno possa compreender uma realidade abordada em sua amplitude.
Percebe-se a falta de maior problematização da realidade estudada. Fato que
pode estimular o estudante a formular uma ideologia, na qual, determinado acontecimento,
vivenciado no passado, não produz reflexos em sua própria realidade. Dessa
forma, torna-se necessário refletir sobre a proposta feita pelo falecido Marc
Bloch [2002], em que consiste no entendimento do presente, com os olhos no
passado.
Torna-se imperativo a descaracterização da
imagem do negro ou pardo apenas como pobre, enquanto os homens brancos são
portadores dos meios de produção. Assim como é necessário reforçar no debate
acadêmico e em parte dos livros didáticos produzidos no período contemporâneo a
ideia de interação entre senhor e escravo, assim como entre os excluídos em
geral: homens brancos e pobres, com negros alforriados, por exemplo, no recorte
temporal analisado.
Referências
Luciano Araujo Monteiro é aluno, vinculado ao
programa de mestrado acadêmico, pelo Departamento de História da UNIFESP.
Graduado em História, com certificação em patrimônio e pós-graduado em Gestão
Pública pela mesma universidade.
BITTENCOURT, Circe. História na Sala de Aula:
conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 185-204.
[livro]
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício
de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002. [livro]
CARDOSO, Fernando Henrique. Quase Mito. In:
MAIS. Folha de São Paulo, 28 set. 2003. [jornal]
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à
República. São Paulo: Editora Unesp, 2007, p. 367-386. [livro]
MEDEIROS, Maria Alice. Casa-Grande &
Senzala: uma interpretação de dados. Revista de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro, vol.23, n.2, p.215-236, 1980. [livro]
LARA, Silvia H. Campos da Violência. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra 1988, p. 183-236. [livro]
Projeto Araribá História [5ª até 8ª séries].
São Paulo: Editora Moderna, 2006.
SOUZA, Laura de Mello
e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira
do século XVIII. 4ª ed. São Paulo: Graal, 2004. [livro]
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