Marcos Vinicius de Andrade Gomes e Pedro Celestino


PERSPECTIVAS PRELIMINARES SOBRE O ENSINO DAS TRADIÇÕES INDÍGENAS A PARTIR DA PERIODIZAÇÃO


Introdução a Situação Do Ensino das Tradições Indígenas no Brasil
O ensino da história nos níveis básicos da educação é muito atrelado aos conceitos ocidentais do tempo e de como este se divide formalmente: história antiga, idade média, história moderna e contemporânea, o modelo de ensino atual não dialoga com outras perspectivas sobre o assunto, a prática pedagógica nos leva a crer que o modelo pelo qual a história nos é contada é único onde o homem europeu é o ator principal, uma vez que é a sua visão que nos é ensinada em detrimento de outros atores como o africano escravizado ou o índio o qual vê o seu modo de vida ser alterado pelo contato com o outro.

Todos sabem, por terem aprendido na escola, que a história se divide em quatro grandes períodos ou épocas: Antiguidade, Idade Média, Época Moderna, Mundo Contemporâneo. Mas esta verdade, se acaso o é, só é admitida no ocidente. [POMIAN, 1993, 164]

Contudo, esta educação ocidentalizada é reflexo da história ensinada nas faculdades, que reproduzem o discurso ocidental sobre a maneira de se conceber a história e o tempo. Como pode ser visto em diversas grades curriculares de instituições de ensino superior. É importante observar a maneira como as grades curriculares destas instituições tratam o conteúdo referente às culturas indígenas como tópicos paralelos a história do homem, em disciplinas separadas da temporalidade da história corrente provavelmente para obedecer à legislação vigente desde 2008 com a lei 11645 que garante o ensino sobre as supracitadas culturas.

“PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro- brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” [NR]
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad
[BRASIL. Lei n.º 9.394, de 20/12/96, art. 65]”

O que foi até aqui apresentado é confirmado na fala de Daniel Munduruku, Autor premiado de diversos livros pertencente à etnia Munduruku:

“Não preciso lembrar aqui que a lógica de quem domina é totalmente diferente daquela dita anteriormente. O humano ocidental cresceu para dominar a natureza como algo fora dele. Dessa forma ele ignorou a escrita da natureza na tentativa de tornar-se dono dela. Desvalorizou as outras formas de leitura e de escrita do mundo e impôs seus próprios olhares e métodos científicos fazendo-nos crer que sua escrita era mais perfeita que aquela infinitamente mais antiga.” [Mundukuru, Daniel]

Como pode se observar na fala de Daniel, as práticas de dominação são diversas e a supressão do conhecimento tradicional indígena em prol da escrita e do conhecimento científico europeu é apenas uma das formas de se subjugar a ancestralidade indígena.

“A barbárie continua, no entanto é preciso destacar a resistência a esta barbárie, como no Brasil, onde foram criadas associações de luta pela proteção das populações indígenas e de seus direitos.” [MORIN, 2009, p. 39]

Contudo existem iniciativas que visam promover o ensino das tradições indígenas. Este trabalho busca compreender estas iniciativas e contribuir com uma proposta de diálogo entre as práticas europeias e as práticas indígenas. Iremos utilizar as narrativas indígenas encontradas no site do Instituto Socioambiental e os depoimentos do documentário: “Índios no Brasil” da TV Escola, como fonte de depoimentos indígenas.

A periodização Indígena
Quem nos conta como se dá a periodização nas tradições indígenas é Joaquim Maná da etnia Kaxinawá do Acre no oitavo episódio do documentário: “Índios no Brasil”. Joaquim inicia sua fala evidenciando os diversos campos da história indígenas existentes como: história da terra, história das tradições, História do Trabalho, a História da vida de cada um e uma História coletiva do povo Indígena. Esta História do povo indígena pode ser encontrada em uma cartilha homônima e de autoria da própria etnia Kaxinawa, nesta cartilha os Kaxinawá dividem os períodos temporais em quatro, sendo eles: Tempo da Maloca, Tempo da Correria, Tempo do Cativeiro e Tempo do Direito.

Tempo da Maloca: Na fala de Joaquim este período refere-se ao tempo anterior à chegada dos portugueses, pois a alimentação era abundante e não ocorriam tantas doenças: “Era um tempo de fartura de alimentos e de muita saúde” define Joaquim. A visão dos portugueses sobre o “Brasil” compactua com a descrição de Joaquim. Ao chegarem às costas brasileiras “os navegadores pensaram que haviam atingido o paraíso terreal: uma região de eterna primavera, onde se vivia comumente por mais de cem anos em perpetua inocência.” [CUNHA, 2012, p. 8]

Tempo da Correria: É o momento de encontro com os portugueses, pois é nesse período que a população indígena se vê obrigada a sair de suas terras. Joaquim revela as dificuldades encontradas nas fugas pelos anciãos, os estupros das índias, e a baixa natalidade em função da necessidade de locomoverem-se rapidamente. Aicué curí uiocó, paraná-assú sui, peruaiana, quirimbaua piri pessuí [Vai aparecer do rio maior, o maior e mais poderoso inimigo de vocês]. Foi com essa mensagem que Ponaminari, o grande mensageiro de Tupana, tentou prevenir todos os povos que dominavam estas terras antes de 1500. [ Bráz de Oliveira França Baré]  Esta Profecia proferida por Bráz nos remete a profecia de quetzacoal com a diferença que os astecas proferiam que o salvador viria pelo mar.

Tempo do Cativeiro: Vem logo em seguida ao tempo da correria, é fruto do contato com os diversos povos que agora dividiam as terras com eles, Joaquim aponta o ciclo da borracha como um dos meios de utilização de mão de obra indígena. E que estes eram privados de caçar, correr e pescar, e que caso o índio não suportasse a carga de serviços ele era espancado até a morte. É importante notar como em todo o momento surge o temor à arma de fogo como ferramenta de poder. Uma figura muito emblemática na fala de Joaquim é a de Felizardo Cerqueira, que foi um dos primeiros a aldear indígenas em forma de cativeiro, chegando a marcar os índios com suas iniciais. Joaquim utiliza os termos amansar e domesticar para descrever a maneira como Felizardo se sentia em relação à marcação indígena e compara aquela marca com a qual se marcam os animais. Como se Felizardo passasse a ser dono daquele índio. E por último relata que um padre francês escreveu que os índios eram mortos como animais por não serem batizados.

No rio Negro, habitado ao longo de todo o seu curso pelo povo Baré, e em seus afluentes pelos Tukano, Desana, Arapasso, Wanano, Tuyuka, Baniwa, Warekena e outros, ocorreram as mesmas violências. Povos e aldeias inteiras foram dizimados pelos invasores franceses, holandeses e portugueses. Comerciantes brancos, credenciados pelos governadores das províncias, eram portadores de carta branca para praticarem qualquer ato criminoso contra os povos indígenas. Nem mesmo o grande cacique guerreiro “Wayury-kawa” [Ajuricaba] conseguiu livrar seu povo dos carrascos invasores, pois a luta era totalmente desigual: enquanto os índios lutavam com suas flechas e zarabatanas, os brancos disparavam poderosos canhões contra homens, mulheres e crianças que tentavam impedi-los de entrar em suas terras. Mas mesmo dominado, preso e ferido, Ajuricaba preferiu a morte, jogando-se acorrentado ao rio. [Bráz de Oliveira França Baré]

Tempo dos Direitos: Refere-se aos direitos conquistados como a demarcação indígena, escolas indígenas e assistência técnica, médica e agrícola. Joaquim Mana reflete que só isso não é o suficiente, mas que o índio precisa de direitos que lhe garantam cidadania. A problematização deste período fica evidente na fala de Daniel Mundukuru quando:

“A resposta não é simples, mas ouso dizer que as pedagogias inclusivas não passam de arremedos na solução de um “problema” indígena, pois elas salientam ainda mais a falta de uma real compreensão do que seja um povo indígena e suas verdadeiras necessidades. Mais: elas escancaram a falta de um pensamento governamental a respeito do tratamento que estes grupos étnicos devem ter. Ou seja, revelam que o governo não tem competência para definir o que ele pensa a respeito dos indígenas. Ou será que alguém de governo já se posicionou de forma inequívoca sobre as intenções políticas com relação aos indígenas? Como saber quais as reais intenções políticas oficiais sobre os nativos? Ora, o que vem acontecendo são justificativas pedagógicas do tipo inclusivistas [a diversidade na universidade], ou paliativas [programas estaduais de magistérios indígenas] ou ainda neoliberais [formação de técnicos para suprir o mercado].E qual o propósito disso? Seriam muito diferentes dos projetos de “inclusão” que faziam os militares em sua política de incorporação à sociedade brasileira?” [Mundukuru, Daniel]

A periodização da História Brasileira nos moldes europeus
Em virtude da colonização portuguesa, o Brasil sofre uma enorme influência europeia e isto pode ser visto nos moldes tais como a história é ensinada no país. Retomando a antiguidade clássica, a qual remota à Europa, passando pelo período feudal, o qual também é um exclusivo europeu, para enfim chegarmos ao período tido como modernidade, em que por meio das expansões marítimas temos a introdução da América e do Brasil na História.

O estudo da História do Brasil iniciava-se no primeiro ano e perdurava até o sexto e não era diferente do da História Universal. Seguia a cronologia política, partindo das “descobertas marítimas e geográficas dos portugueses e espanhóis nos séculos XV e XVI” e atingia o estudo da ideia republicana no Brasil. E seu triunfo em 15 de novembro de 1989. [NADAI, 1992, p. 148]

Este modelo iniciado em 1892 perdura até os dias de hoje, como já vimos em escolas e nas universidades. É interessante notar como esta História “europeisante”, tende a excluir os índios da história do Brasil, colocando como se o Brasil se iniciasse com a chegada de Cabral. É mais interessante notar que o mesmo não se dá nas colônias espanholas onde se tem relativo conhecimento acerca das culturas pré-colombianas e este conhecimento é reproduzido nas escolas brasileiras. Abaixo um exemplo retirado do livro “História do Brasil” de Bóris Fausto:

“Podemos dividir a história do Brasil colonial em três períodos muito desiguais em termos cronológicos: o primeiro vai da chegada de Cabral à instalação do governo geral, em 1549; o segundo é um longo lapso de tempo entre a instalação do governo geral e as ultimas décadas do século XVIII; o terceiro vai dessa época à Independência, em 1822. O que justifica essa periodização não são os fatos apontados em si mesmos, mas sim aquilo que expressam. O primeiro período se caracteriza pelo reconhecimento e posse da nova terra e um escasso comércio. Com a criação do governo geral inicia-se a montagem da colonização que irá se consolidar ao longo de mais de dois séculos, com marchas e contramarchas. As últimas décadas do século XVIII são uma referência para indicar um conjunto de transformações na ordem mundial e nas colônias, que dão origem à crise do sistema colonial e aos movimentos pela independência.” [FAUSTO, 96 p.22]

Em momento algum você tem alguma referência ao índio na história colonial do Brasil do autor. A historiografia vigente não exclui o personagem do índio, apenas relativiza o seu papel como construtor da história do Brasil, tornando-o um mero coadjuvante do colonizador português, que é o autor principal da história brasileira. Contudo, não podemos deixar uma tradição rica como a indígena se calar, a cada dia novas iniciativas surgem no intuito de dar voz a estes povos como visto nas narrativas do Instituto Socioambiental e no Documentário da TV escola que em muito contribuem neste processo. É de extrema importância inserir as temáticas indígenas nos níveis superiores de ensino para que os novos profissionais tenham a capacidade de reproduzir estes conteúdos tão ricos em sala de aula.

“Assim também a história do Brasil, a canônica, começa invariavelmente pelo “descobrimento”. São os “descobridores” que a inauguram e conferem aos gentios uma entrada de serviço no grande curso da história.” [CUNHA 2012, p. 8]

Como pode se ver na experiência apresentada por Joaquim Maná é possível apresentar uma periodização da História do Brasil diferente da europeia a qual estamos habituados. É possível enriquecer a discussão sobre o período “Colonial” ao confronta-lo com o período da “Correria” e do “Cativeiro”. A periodização indígena pode ser uma ferramenta de alteridade que ajude os alunos principalmente nos níveis básicos da educação a se colocarem no lugar de quem sofre o ataque.

Poderíamos tentar adquirir uma visão dupla, ver as pessoas no passado como diferentes de nós [para evitar a atribuição anacrônica de nossos valores a elas], mas ao mesmo tempo como iguais a nós em sua humanidade fundamental. [BURKE, 2011]

Partindo da alteridade, ainda a problematizar tais situações de acordo com Macedo (2000), para que possamos promover significância destes signos e assim nos aproximarmos da proposta de inclusão feita por Daniel Mundukuru.

Assim o aluno teria a oportunidade de visualizar a “utilidade” dessas informações não as tendo mais como algo abstrato e mecânico de uma cópia da lousa. Informações adquiridas em situações-problema têm maior possibilidade de tornarem-se significantes para o indivíduo e dessa forma transformar-se em um conhecimento adquirido [MACEDO; PASSOS; PETTY, 2000].
É o silêncio destes povos o responsável pela aculturação que recai sobre as tradições indígenas, e uso a palavra aculturação mesmo sabendo dos receios existentes quanto a mesma para evidenciar o assassinato não só metafórico que estes povos vem sofrendo ao longo de 5 séculos de contato com o homem branco.

Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência do que se chama, num eufemismo envergonhado, “o encontro” de sociedades do antigo e do novo mundo. Esse morticínio, nunca visto, foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e micro-organismos, mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição, formas culturais da expansão do que se convencionou chamar de capitalismo mercantil [CUNHA 2012, p. 14]

Referências
Marcos Vinicius de Andrade Gomes é estudante de História na Universidade Estadual de Minas Gerais. Email: mvag1906@hotmail.com
Pedro Celestino é estudante de História na Universidade Estadual de Minas Gerais. Email: pewwep@hotmail.com

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: Lei n. 9394/96. Brasília, MEC. 1996.
BRAZ, França de Oliveira. Nós não éramos indios. CF> socioambiental. org/pt/povo/bare, 2018.
BURKE, Peter; PORTO, Alda. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Introdução a uma história indígena. História dos índios no Brasil, 1998.
DE MACEDO, Lino; PETTY, Ana Lúcia S.; PASSOS, Norimar C. Aprender com jogos e situações-problema. Artmed Editora, 2009.
Indios do Brasil – Uma outra Historia, 1999 – TV Escola Disponivel em: https:// https://api.tvescola.org.br/tve/video/indios-no-brasil-uma-outra-historia
MUNDURUKU, Daniel. A escrita e a autoria fortalecendo a identidade. CF> socioambiental. org/pt/povo/munduruku, 2018.
NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de História, v. 13, n. 25/26, p. 143-162, 1992.
POMIAN, Krzysztof. Periodização. Enciclopédia Einaudi, v. 29, p. 164-213, 1993. MORIN, Edgar; DE VIVEIROS, Ana Paula. Cultura e barbárie europeias. 2009.

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