Vânia Cristina da Silva e Cláudia Cristina do Lago Borges


“A HISTÓRIA EXPLICA O PASSADO E O PRESENTE”: O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA POTIGUARA


“A aula de história mostra um pouco da nossa identidade, da nossa cultura”.  [Janaína, 3º ano, 2019].

O trecho citado acima refere-se à resposta elaborada por uma estudante indígena, à época com 16 anos, matriculada no 3º ano da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental e Médio Akajutibiró, localizada na aldeia Akajutibiró, município de Baía da Traição, Estado da Paraíba. A questão respondida indagava o seguinte: “Você gosta das aulas de História? Por quê?”

O presente artigo, recorte da pesquisa de doutorado da autora, intitulada: O Ensino de História na Educação Escolar Indígena Potiguara da Paraíba-PB, que se encontra em andamento no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, e participante dos projetos desenvolvidos pelo Grupo Abaiara – Estudos Indígenas da Paraíba, tem como objetivo compreender a relação constituída entre os estudantes potiguara e as aulas de História na Escola Estadual Indígena Akajutibiró. A partir da visita à referida instituição de ensino, no ano de 2019, foi possível a aplicação de um questionário, contendo nove questões, com estudantes do 3º ano do Ensino Médio. Com o propósito de discutirmos algumas das questões aplicadas, para a escrita deste artigo, selecionamos as respostas de três alunos, descritos aqui por Janaína, Maiara e Ubiratan. Por recomendação do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, optamos pela utilização de nomes fictícios para os estudantes.

Vera Lucia Ferlini [2007, p. 15], ao prefaciar o livro: Guerras e Açúcares: Política e Economia na Capitania da Parayba – 1585-1630, afirma que “A História, mais que outras formas de conhecimento, tem sido instrumento de construção e de manutenção de identidades”. Seguindo um entendimento próximo a esse, Circe Maria Bittencourt [1994, p. 112] nos informa que: “Além das noções de tempo e espaço, o conhecimento histórico está intrinsecamente relacionado à construção da noção de identidade”. 

Aqui, retornamos ao ponto inicial desse texto, quando a estudante, ao ser questionada sobre a aula de História, foi pontual em sua resposta afirmando gostar da matéria por esta lidar com aspectos relacionados à identidade e à cultura do seu povo. Isso posto, observamos que o Ensino de História em escolas da modalidade de Educação Escolar Indígena assume uma importante função social, que vai além das noções de conteúdos previstas nos currículos oficiais, mas perpassa a relação que esses alunos estabelecem com sua própria cultura, com os costumes e tradições relacionados às suas vivências em comunidade, com a sua etnia.

Essa é uma questão que pôde ser constatada num segundo momento do questionário, quando perguntamos: “Em suas aulas de História, o que você estuda sobre os povos indígenas?” A estudante deu a seguinte resposta: “Estudamos sobre a cultura, principalmente a da nossa aldeia é claro, as leis que é muito importante [sic] para todos nós alunos” [Janaína, 3º ano, 2019].

Percebam que a estudante, ao seu modo, menciona que entender sobre a própria cultura faz-se importante, tanto quanto considera essencial o entendimento das leis. Aqui, certamente, ela se referia aos documentos oficiais que direcionam e normatizam a vida em sociedade. A resposta de Janaína nos permite a compreensão de que a aprendizagem em história envolve o contato com os conhecimentos vinculados à vida do seu grupo, mas para eles também é relevante se apropriarem daquilo que acontece fora da aldeia, num contexto mais amplo e do qual eles também fazem parte.

Possivelmente, a jovem aluna não tenha dimensionado a relevância de sua resposta à nossa pesquisa. Em poucas linhas, com resumidas palavras, ela nos permitiu  compreendermos que o Ensino de História, nesse contexto, assume uma relevante função social, numa relação muito próxima com o desejo desses grupos na preservação de suas tradições e costumes. Entretanto, concomitante a isso, também buscam que lhes sejam assegurados os direitos sociais e políticos que durante séculos a eles foram negados. O sentido para o esforço que empreendem na manutenção desta identidade se ancora, além de outras questões, à noção desta como elemento crucial de mobilização política, o que permite a eles a conquista de objetivos relacionados às suas necessidades básicas, como o reconhecimento e demarcação de seus territórios tradicionais e uma educação específica e diferenciada.  

No cerne deste debate, Bittencourt [1994, p. 105] enfatiza que, para a maior parte dos grupos indígenas que têm procurado a preservação de suas culturas, “[...] esta afirmação de identidade tem sido entendida por eles como uma forma de luta política para manutenção de suas terras e direitos de autodeterminação”. Desta forma, o “Ensino de História, nas escolas indígenas, [...] pode contribuir para a ampliação de seu universo cultural e político, servindo como aquisição importante em suas novas formas de lutas de resistência” [Bittencourt, 1994, p. 106].

Nessa mesma perspectiva, ao tratarem de assunto semelhante, Bergamaschi e Medeiros [2010, p. 62] reiteram que existe uma “[...] relação direta entre história e produção de identidades, seja ela étnica, social ou nacional”. Entretanto, argumentam: “[...] se a história está ligada à identidade de um grupo, é a história que representa a visão de mundo desse grupo que poderá ser significativa na constituição de sua identidade” [Bergamaschi e Medeiros, 2010, p. 62]. A esse respeito, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas/RCNEI (1998) menciona o seguinte:

“[...] dependendo do contexto de cada escola, é preciso repensar que tipo(s) de identidade(s) está sendo formada através do currículo escolar, e qual a sua importância para cada realidade social. Nesse sentido, no estudo da História, dependendo das escolhas pedagógicas feitas pelo professor, pode-se possibilitar aos alunos refletirem sobre seus valores e suas práticas cotidianas e relacioná-los com as problemáticas históricas de seu grupo, de sua localidade, de sua região e da sociedade nacional e mundial”. [Brasil, 1998, p. 197].

Considerando essas questões, devemos mencionar a compreensão de Katheryn Woodward [2000, p. 34], para quem a construção da identidade envolve aspectos tanto simbólicos quanto sociais. Dessa maneira: “A política de identidade concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou marginalizado. Essa identidade torna-se, assim, um fator importante de mobilização política”.

Novamente, retornamos ao instrumento de pesquisa, quando outra estudante, Maiara [3º ano, 2019], ao responder à questão: “Em suas aulas de História, o que você estuda sobre os povos indígenas?”, deu o seguinte retorno: “Sobre a lei 10.639, onde fala dos indígenas e dos povos africano [sic]”.  A aluna, embora tenha mencionado a lei de 2003, que prevê a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, quando deveria ter feito referência à lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que alterou essa primeira e incluiu a história dos povos indígenas como temática obrigatória no ensino de História, tem consciência da relevância existente na apropriação dos conhecimentos relacionados aos direitos assegurados pelo Estado às populações indígenas.

Isso nos permite duas observações, a primeira, diz respeito à importância da aprovação da referida lei, tanto para os estudantes não indígenas, principal público para o qual esta foi pensada, que passaram a ter assegurado o direito a conhecerem a trajetória dos povos indígenas dentro da História do Brasil, quanto para os alunos indígenas, por se sentirem, de certa forma, mais contemplados nesse contexto histórico do qual foram silenciados durante séculos. Deste modo, ao analisarmos o conteúdo da Lei 11.645/08, percebemos um avanço nesse sentido:

“Art. 1o  O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o  O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o  Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR). [BRASIL, 2008].

Uma segunda observação diz respeito à atuação dos professores de história Escola Akajutibiró, nos mostrando que esses, certamente, têm levado para suas práticas pedagógicas noções importantes que ultrapassam os limites do conhecimento histórico conteudista, mas que se aproximam da vivência desses estudantes, da experiência de vida deles no momento presente e, consequentemente, do domínio por esses sujeitos dos direitos aos quais devem ter acesso. Sobre esse assunto, a estudante Maiara, também com 16 anos, ao ser indagada sobre: “Você gosta das aulas de História? Por quê?”, respondeu da seguinte maneira:

“Sim, porque gosto muito da professora, ela mostra que nós indígenas podemos fazer uma faculdade, que podemos chegar onde quisermos e podemos conquista nosso lugar na sociedade que também é nosso, além de que aprendemos muito sobre nossa cultura” [sic]. [Maiara, 3º ano, 2019].

Notem que ao mencionar o desejo de cursar uma faculdade, a estudante demonstra que essa percepção política de identidade pode impactar de forma positiva a luta dos povos indígenas pelo seu reconhecimento, sendo a educação um dos caminhos para essa conquista, uma vez que, diferentemente do que ocorreu durante séculos de história, em anos mais recentes, o papel do ensino formal a essas populações tem sido redimensionado, tem lhe sido dado um novo sentido, de modo a propiciar a esses grupos não só referenciais para que compreendam a sociedade nacional, mas também os referenciais da inteligibilidade deles próprios, de sua especificidade e identidade.

Acerca dessas questões, Bergamaschi e Medeiros [2010, n.p.] pontuam:

“É importante compreender por que as comunidades indígenas vêm requisitando a educação escolar, uma modalidade de ensino que vem crescendo em todos os níveis, inclusive no Ensino Superior, que hoje registra a presença de mais de cinco mil universitários indígenas. Diferente de outros momentos históricos, nos quais alguns grupos indígenas buscaram isolar-se como forma de resistência, hoje a maioria deles mostra-se e atua num movimento de reafirmação das identidades e num processo intenso de diálogo com a sociedade nacional. Dominar seus códigos se tornou imprescindível para a manutenção dos povos indígenas e, por isso, a escola passou a ser vista como uma estratégia de afirmação étnica. Ela possibilita o contato com conhecimentos e saberes do mundo não indígena, tornando-o mais compreensível, e permite que, de posse desses novos instrumentais, os povos indígenas possam lutar por seus direitos de forma mais simétrica, apreendendo o sistema de vida ocidental, mas mantendo e afirmando seus modos próprios de educação. Pode-se compreender esse momento inserido num movimento mais amplo de organização dos povos originários de toda a América, em que o reconhecimento dos seus direitos deve-se também à educação escolar”.

Interessante notar que a escola, uma instituição que no momento da colonização tinha como atribuição a dominação dos povos indígenas, acabou se tornando apropriada por estes que a reverteram a seu favor, como mais uma garantia na manutenção da identidade cultural que se espera preservar. Mas é preciso ponderar que nestas instituições, a disciplina de História não pode assumir as mesmas características do ensino nas escolas convencionais, considerando que “[...] cada sociedade organiza suas narrativas de formas diferentes, compreende a História de modo diverso e constrói concepções de tempo que precisam ser respeitadas” [RCNEI, 1998, p. 198].

Consideramos, então, que a História possui relevância social na vida dos estudantes indígenas Potiguara, que se apropriam dela como mais uma forma de busca no reconhecimento de sua identidade e, a partir disso, a conquista de objetivos relativos aos seus direitos, como o reconhecimento e demarcação de seus territórios tradicionais, uma luta tão cara a essas populações, especialmente no contexto atual, mas que vem sendo conquistada, ainda que paulatinamente. Essas reflexões nos permitem concluir afirmando que estudar História, para além da aquisição de conhecimentos sobre a humanidade e sua trajetória, permite aos estudantes, indígenas ou não, reconhecerem-se como sujeitos desse contexto, afinal, como mencionou o estudante Ubiratan [3º ano, 2019], 17 anos: “A história explica o passado e o presente”.

Referências
Vânia Cristina da Silva é licenciada em História pela Universidade Estadual de Goiás-UEG. Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB. Atualmente cursa doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás-UFG. Vinculada ao Grupo de Pesquisa Abaiara/UFPB. Endereço eletrônico:
<vaniac_historia@hotmail.com>.
Cláudia Cristina do Lago Borges é doutora e professora do Departamento de História da UFPB. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Abaiara. Endereço eletrônico: <claudialago.rn@gmail.com>.

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; MEDEIROS, Juliana Schneider. História, memória e tradição na educação escolar indígena: o caso de uma escola Kaingang. In: Revista Brasileira de História - vol. 30, nº 60. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v30n60/a04v3060.pdf Acesso em: 23 fev. 2020. [internet]
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. O ensino de história para populações indígenas. Brasília: INEP, 1994. Disponível em:
http://rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/1982/1951 Acesso em: 23 fev. 2020. [internet]
BRASIL. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002078.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020. [internet]
BRASIL. Presidência da República. Lei N.° 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Disponível em:
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BRASIL. Presidência da República. Lei N.° 11.645, de 10 de março de 2008. Disponível em:
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FERLINI, Vera Lucia. Prefácio. In: GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na Capitania da Parayba, 1585-1630. Bauru, SP: Edusc, 2007. [artigo]
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. [livro]
WOODWARD, K. 2000. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes. [livro]


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