Fabiola de Sousa e Silva e Jakson dos Santos Ribeiro


A LEI AINDA ENFRENTA DESAFIOS NOS TEMPOS DE HOJE?: REFLEXÕES SOBRE APLICAÇÃO DA LEI DE OBRIGATORIEDADE DO ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO BÁSICO (LEI N° 10.639/2003)


A sociedade brasileira é vista por uma perspectiva diversificada, e a principal delas, a cultural, que é marcada por contribuições de diferentes etnias. A população tem descendência europeia, indígena e africana, assim tornando-a plural e homogênea. Porém, a história do Brasil, que teve forte influência do colonialismo europeu, traz evidências de exclusão social, que é caracterizada pela escravidão negra e indígena que se corporifica até no atual século XXI. O racismo e o preconceito ainda persistem naturalizando e se revelando de diferentes modos todos os dias.

No entanto, em pleno século ainda é possível afirmar, que pouco se tem conhecimento sobre a cultura e história africana. Hoje em dia a maioria dos livros trata a história do negro exclusivamente na perspectiva da escravidão, ressaltando, mesmo que de forma subentendida, uma suposta superioridade racial branca, o que reforça mais ainda a desigualdade racial.
A discriminação racial está exposta em diferentes espaços sociais, entre eles a escola. A escola sendo o segundo espaço de desenvolvimento social e individual é propício para a construção de saberes e identidades. É através dela que aprendemos os valores éticos e morais para o bom exercício da ideia de cidadão e no relacionamento social. Porém, a mesma se enquadra no contexto do pensamento eurocêntrico, a política e ações de embranquecimento assola da educação infantil até aos altos níveis da academia. E é neste espaço que educadoras e educadores tem a viabilidade de fazer rupturas frente as dessemelhanças que se permeiam.

É necessário discutir, argumentar e analisar o papel do negro na sociedade brasileira, as relações étnicos-raciais e a história e cultura afro-brasileira e africana. Apesar da declaração de liberdade aos negros em 1888 pela Lei Áurea, a discriminação racial que antes era através da escravidão, ainda permanece. O que reforça a presença de uma cultura eurocêntrica que está na sociedade e emerge nas relações sociais entre as pessoas.

Compreende-se, através de estudos recorrentes sobre a escravidão, que logo após a abolição a população negra passa a lutar por seus direitos, visto que, isso iria garantir a continuidade de suas histórias, suas culturas, suas visões de mundo e de suma importância, seu espaço como cidadão liberto. Mesmo com todas as negações da história e segregação da sociedade, essa população resistiu e se organizou através de movimentos negros que reivindicaram seus direitos perante a sociedade. Exigindo políticas de inclusão e reconhecimento no aporte histórico do país.

Conquista do movimento Afro-brasileiro
Uma das grandes conquistas dos movimentos da população negra foi sem dúvida a Lei Federal N° 10.639/2003 que tem como obrigatoriedade na grade curricular de História o Ensino de História e cultura afro-brasileira e africana no Ensino fundamental e Médio de escolas públicas e privadas e também a inclusão no calendário escolar o dia 20 de novembro como dia da Consciência Negra, data da morte de Zumbi, líder principal do quilombo dos Palmares.

O movimento afro-brasileiro tem batalhado durante muito tempo por respeito, justiça, melhoria na qualidade de vida dos afro-brasileiros e igualdade de condições, porque, durante quatro séculos, os negros foram escravos no Brasil.

Em seu estudo sobre aplicabilidade da lei em escolas estaduais de Aracajú, Núbia Maria Santos Lopes Dias, destaca que a criação da data, 20 de novembro, foi admissível porque serve como conscientização e reflexão da importância que a cultura do povo africano tem na formação cultural brasileira. Colaboraram para nossa história tanto em aspectos sociais, religiosos, econômicos e políticos e por isso deve-se comemorar este dia nas escolas, nos espaços culturais, entre outros, a fim de valorizar esta cultura.  

De acordo com estudos historiográficos brasileiro, o caminho que os africanos tiveram, da África até aqui, foi marcada com muita humilhação, violência, foram tratados como animais recebendo chicotadas, mas resistiam a tais obrigações com esperança daquele cenário um dia mudar, diante de tantas lutas de resistência foram jogados à liberdade. Jogados pois não tiveram direitos a nada. E diante deste cenário tiveram que lutar mais uma vez por seu espaço na sociedade.

Foi a partir desta situação, que os afrodescendentes tiveram que formar movimentos com a intenção de buscar construir e conquistar políticas públicas de ações afirmativas, que pudessem reparar os quatro séculos de negação, de direito, à saúde, à educação, aos bens matérias e à cidadania plena, que já eram dispostas na nossa lei maior, a Constituição Federal, através dos seus dispositivos, que determina a igualdade de todos, mas segundo Jorge Bezerra Arruda: “isto só seria possível através de política de recuperação como é o caso do Estatuto de Igualdade Racial.” [Arruda, 2008, p. 20]

Para que essa conquista do movimento social negro tivesse um maior apoio foi contado com a participação dos Deputados Federais Ester Grossi, educadora, e Bem-Hur Ferreira, ativista do movimento negro, com um projeto de autoria dos mesmos e apresentado em 1999. É sempre relevante contar com a colaboração de pessoas importantes que entendam do assunto e aceitam que causas como esta devem ser reconhecidas.

Embora ponderando que políticas públicas são aprovadas para beneficiar os afrodescendentes, a história e cultura afro-brasileiras, persiste em ser vista de forma preconceituosa em nosso país, por este fato a Lei nº. 10.639/03 é um marco histórico que visa concertar falhas passados, todavia é inegável ressaltar a importância dos movimentos afrodescendentes na conquista desta lei, uma conquista que vai também contra as injustiças, contra a opressão advindas da escravidão, beneficiando a valorização e o reconhecimento da identidade cultural e histórica dos negros brasileiros, com isto erradicar a discriminação racial e o preconceito existente no Brasil. 

Sobre a Lei Federal N° 10.639/2003 e os desafios da aplicação no Ensino Básico
A Lei N° 10.639/2003 foi legitimada em 9 de janeiro de 2003 pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, ela altera a lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que tornou obrigatório o Ensino de História Cultura Afro-brasileira e Africana, mas a discussão em torno desta lei precede essa data, tendo diferentes atores e campos sociais, sendo a mobilidade Negra, a protagonista.

Segundo [Pereira e Silva, 2013, p.126]:

“A referida lei não surgiu de um dia para outro. Ao contrário, antes de ser sancionada, passou por diversos estágios, resultando dos movimentos negros da década de 1970 e do esforço de simpatizantes da causa negra na década de 1980, quando diversos pesquisadores alertaram para a evasão e para o déficit de alunos negros nas escolas, em razão, entre outras causas, da ausência de conteúdos afrocêntricos, que valorizassem a cultura negra de forma abrangente e positiva”. [Pereira e Silva, 2013, P.12]

É sabido que essa obrigatoriedade se torna um grande desafio para as escolas brasileiras e também para os programas formadores de professores. A ausência de conhecimento com relação a temática está diretamente relacionada a formação inicial e continuada do corpo docente e principalmente, a conduta pessoal e política dos profissionais das escolas. Visto isso, o trabalho de sensibilizar os profissionais educacionais quanto aos valores da cultura Afro-brasileira e africana é de estigma importância para o sucesso da implementação da lei.

De acordo com Kabengele Munanga: “Como educadores, devemos saber que apesar da lógica da razão ser importante nos processos formativos e informativos, ela não modifica por si o imaginário e as representações coletivas negativas que se tem do Negro.

[...] na nossa sociedade. Ainda segundo ele, considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados onde brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas linguagens capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondido na estrutura profunda do nosso psiquismo”. [Munanga, 2005, p.19]

A lei não concebe, por si só, as práticas pedagógicas multiculturais nas escolas. É meramente necessário reconhecer seus percalços, mas é fundamental pensar nela como um importante passo na direção de uma sociedade em que a diversidade seja valorizada. Apesar da lei nº 10.639/03 ter sido implantada há 17 anos, ainda permanecemos distantes de conferir sua efetivação implementar e seus efeitos positivos nas relações sociais, uma vez que a sociedade persiste em reproduzir um discurso preconceituoso e racista.

Pode-se verificar muitos avanços ocorridos durante todo esse tempo após a implementação, como por exemplo, um maior número de materiais didáticos que trabalham essa questão, mais livros e mais professores engajados no trabalho com a educação das relações étnico raciais, mas também coexistem várias barreiras e percalços que impedem a solidificação desta política educacional.

Para que esta lei saia do papel e seja adaptada para a realidade, além da regulamentação e de transformações na formação do professor, tanto inicialmente como continuada, é imprescindível um esforço conjunto da sociedade na exigência de que os atos sejam efetivados, assim como organização dos sistemas de ensino e disposição dos educadores e gestores educacionais para a edificação de práticas educativas que possibilitem sua concretização. Sobre essa discussão Secad afirma que: 

No ensino fundamental tem-se que trabalhar todas as áreas do conhecimento. E exigido ao (a) professor (a) que tenha reflexão teórica que respalde suas escolhas metodológicas, conteúdo disciplinar socialmente válido, práticas pedagógicas, criativas e qualitativas, além disso pertence aos educadores em retorno à prática da lei 10.639/03, atentar-se para a interdisciplinaridade e ficarem abertos ao diálogo, à escuta, à conexão de saberes, além de aliar as concepções filosóficas de matriz africana em todo currículo escolar.” [...] Desta forma, construir e constituir uma pedagogia que possa realmente contemplar os valores civilizatórios brasileiros.” [Secad, 2006, p. 57].

Ao abordar a presença do negro no Brasil ou até mesmo a história da África, os docentes precisam expor a história de forma positiva, para que os alunos afrodescendentes se sintam valorizados em sua cultura. A opção de um bom livro didático, mesmo que este não esteja incluso na grade, também é fator importante para a promoção da igualdade social, mesmo que ainda exista alguns livros que reforçam o racismo presente na sociedade brasileira.

Além disso compete aos coordenadores pedagógicos nos colégios, agirem de forma mais atenuada, por meio do planejamento de aula e de projeto político pedagógico sempre presente nas escolas. Os coordenadores pedagógicos têm o papel fundamental de desempenhar a melhoria do ensino, pois a ele pertence às políticas de educação.

A Resolução CNE/CP 01/2004, no Artigo 3º, § 2º, estabelece que:

”As coordenações pedagógicas promoverão o aprofundamento de estudos, para que os professores concebam e desenvolvam unidades de estudos, programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares”. [Seppir, 2009, p. 40].

Compreende-se que, a função social da escola está apontada para a desenvolvimento e experimentação de valores morais do cidadão, algo que começa desde cedo, tais como, respeito, tolerância, justiça, a honestidade, dentre outros. Há sempre a necessidade de reflexão de toda a sociedade brasileira ao que se refere sobre este aspecto, visto que a lei 10.639/03 está baseada na reflexão que tem como alicerce a igualdade para todos, tendo a ideia de que somos todos, sujeitos sociais e históricos.

Referências
Fabiola de Sousa e Silva, Graduanda em História, Universidade Estadual do Maranhão- UEMA/ Programa Ensinar de Formação de Professores (fabiolasousa999@gmail.com)
Jakson dos Santos Ribeiro - Professor Adjunto I, Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (2018). Mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão (2014). Especialista em História do Maranhão pelo IESF (Instituto de Ensino Superior Franciscano) (2011). Graduado no Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Maranhão (Centro de Estudos Superiores de Caxias-MA) (2011). Coordenador do Grupo de Estudos de Gêneros do Maranhão- GRUGEM/UEMA Coordenador do Laboratório de Teatro do Centro de Estudos Superiores de Caxias – CESC – Campus /UEMA.

ARRUDA, Jorge Bezerra. Africanidade e Brasilidade: Orientações metodológicas para a implementação da Lei nº 10.639/03. 2. ed. São Paulo: Diáspora, 2008.
CRUZ, Elivania da silva, et, al. O ensino da história e cultura afro-brasileira nas séries iniciais. 2006, f 97, Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) Centro universitário de brasília – UniCEUB, Brasília, 2006. 
LOPES DIAS, Núbia Maria Santos. história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental: aplicabilidade da lei nº 10.639/03 em escolas estaduais de Aracajú. Disponível em:
https://portal.fslf.ed.br/wp-content/uploads/2016/12/Historia_e_cultura_afro_brasileira_no_ensino_fundamental_a.pdf acesso em: 14 de março de 2020
MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília: MEC- SECAD, 2005.
PEREIRA, Márcia M. & SILVA, Maurício. Percurso da lei 10639/03: antecedentes e desdobramentos. Em Tempo de Histórias. Publicação do programa de pós-graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB) Nº. 22, Brasília, jan. – jul. 2013. ISSN 2316-119, p. 125-135.
SECAD. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006.
SEPPIR. Secretaria Especial e Políticas de Promoção da Igualdade Racial Subsecretaria de Políticas de Ações Afirmativas. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2009.
SILVA, Natália Barbosa da. História e Cultura Afro-Brasileira e Africana: desafios na aplicação da Lei 10639/2003 nas séries iniciais do ensino fundamental em uma escola municipal da Baixada Fluminense. 2016. 172 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciada em Pedagogia) - universidade federal do rio de janeiro, Rio de Janeiro. 2016.

5 comentários:

  1. Boa tarde!
    Lá no início vocês disseram: "A sociedade brasileira é vista por uma perspectiva diversificada, e a principal delas, a cultural, que é marcada por contribuições de diferentes etnias. A população tem descendência europeia, indígena e africana, assim tornando-a plural e homogênea.". Não seria heterogênea?

    Att. Luan Marinho Silva

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  2. Sabemos que a obrigatoriedade da lei, não traz consigo a plena efetivação da mesma. O que fazer diante do currículos referência de cada ente federado e diante de BNCC que não traz essa obrigatoriedade? O que fazer, se com duas aulas de história por semana, o professor quase não da conta do currículo atual? Não seria viável a implementação de uma disciplina a parte para esses estudos?

    att. Luan Marinho Silva

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    1. Fabiola de Sousa e Silva21 de maio de 2020 às 21:56

      Sobre a BNCC há uma complicação na forma de pensar como os discentes da Educação Básica poderão ter acesso aos conteúdos que focam
      os valores humanos, que discutem a convivência com os diferentes sujeitos,culturas e as histórias que têm contribuído para a formação do processo civilizatório no Brasil.Todavia,eu acredito que deve haver uma reorganização na base a cerca da Lei 10.639/2003 na qual oferece orientações específicas para o enfrentamento do racismo e do preconceito no sistema educativo. A Base em si não pode ignorá-lá do contrário estará infringindo uma lei.

      Att.Fabiola de Sousa e Silva

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  3. É de suma importância estudar e ensinar História da África e dos Afro-brasileiro, para que assim haja a desconstrução dos estereótipos sobre a África vista enquanto uma representação europeizada e racializada, já que a África é um continente que apresenta uma ampla diversidade cultural, linguística e religiosa. Na sua opinião, além do livro didático, recurso este que são quase que inexistentes capítulos que abordam sobre os a História africana, que outro recurso didático poderia ser usado como metodologia para se ensinar a História da África e dos Afro-brasileiros?

    (Jesus Hellen Leal Conceição)

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