A UTOPIA NA POLÍTICA DE MORUS E POLÍTICA SEM UTOPIA
DOS TUPINAMBÁS
Em 1516, Thomas Morus [1478 – 1535] publicava
em latim a sátira “Utopia” em Lovaina [Flandres]. O livro descrevia uma
fantástica ilha atlântica onde viviam homens racionais em perfeita harmonia
social e ironizava a política e a moral da Inglaterra renascentista. O nome da
ilha Utopia seria homônima ao do rei fundador Utopos que do grego seria a
junção do prefixo “U” [sem] com o substantivo “topos” [lugar] que significa
“sem-lugar” ou em outra acepção, “eu” [bom] e “topos”, “bom lugar”. O parâmetro
entre a ficção e a realidade confundiam-se através de reflexões filosóficas
sobre os vícios dos homens que eram tidos pelo escritor londrino como as raízes
dos problemas sociais do reino, em particular a avareza e a cobiça.
Para Thomas Morus, a fome dos mais pobres
levava ao roubo por ser tanto de um apelo para sobrevivência quanto da cobiça.
Mas, o vício dos mais pobres só existia por conta de outro vício, a avareza dos
mais ricos que gerava a injustiça social. Nas considerações de Morus, o rei em
vez de solucionar esses problemas, deixava os nobres aplicarem punições severas
para manter a ordem: “A punição do roubo com a pena de morte vai muito além da
demanda por justiça, e não atende, de forma alguma, o interesse público”
[MORUS, 2004, p. 13].
Com o objetivo de romper com esse ciclo
vicioso, Morus propôs uma medida entre a cobiça e a avareza, a vida em
comum: “Em Utopia, onde tudo é comum a
todos” e “embora ninguém tenha nada de seu, todos são ricos” [MORUS, 2004, p.
127]. Morus havia sido advogado de comerciantes londrinos e atuou contra a nova
estrutura fundiária dos cercamentos [enclousers] que transformou terras
cultivadas com cereais em pastagens para aumentar as exportações de lã da
Inglaterra. Em 1515, um ano antes da publicação da Utopia, ele foi enviado a
Flandres como Vice-xerife da Coroa para negociar o litígio com o príncipe de
Castela [1500 - 1558]. Carlos V, futuro rei da Espanha herdou os Países Baixos
e proibiu a Holanda de importar a lã da corte de Henrique VIII [1491 - 1547]. O
novo regime de produção e a crise entre as coroas transformou a economia
tradicional com o aumento das horas de trabalho para alguns e a ausência de
trabalho para outros, o que acentuou as disputas sociais e agravou a fome. Tal
qual Morus denunciou em a Utopia:
“Derrubam casas, destroem aldeias e, se
poupam as igrejas é, provavelmente, porque servem de estábulos a seus
carneiros. Essas excelentes pessoas transformam em deserto as habitações, e
tudo que era cultivado; como se as florestas e as terras reservadas à caça já
não prejudicassem bastante a agricultura” [MORUS, 2004, p. 17].
Sabe-se que o livro II da Utopia foi escrito
durante essas negociações em Flandres e a redação do livro I aconteceu durante
o regresso de Thomas Morus a Londres. Em ambas as partes, os vícios que levavam
a fome dos mais pobres o influenciou a “tentar reduzir a pobreza fazendo a
riqueza recuar a patamares compatíveis com os de uma sociedade fraterna”
[LOPES, 2011, p. 67]. Mas, para ter o efeito de realidade, ele partia da
“verificabilidade daquilo que havia sido encontrado e observado” [KOSELLECK,
2014, p. 124] através dos relatos do mareante Américo Vespúcio [1454 – 1512].
Segundo os relatos do mareante Américo
Vespúcio, os antípodas da costa atlântica, os Tupinambás não partilhavam dos
vícios, fronteiras e reinos como os europeus: “Não possuem entre si bens
próprios porque tudo é comum. Não têm fronteiras de reinos ou província; não
têm rei nem obedecem a ninguém; cada um é senhor de si. Não administram
justiça, que não é necessária para eles, porque neles não reina a cobiça”
[VESPÚCIO, S.D, p. 81]. A vida em comum dos Tupinambás brasileiros poderia,
certamente, oferecer a Morus um exemplo de comunidade possível. Contudo, ao que
tudo indica a Utopia não foi escrita a partir dos antípodas do novo mundo. Mas,
por que?
Uma hipótese provável seria que Morus
partilhava da percepção recente dos europeus sobre os povos da orbis alterius.
Os Tupinambás eram imaginados e retratados em uma vida comunitária, mas de
forma exótica e isolada da política e da moral o que impedia uma filosofia.
Conforme representado na xilogravura em madeira que circulou na Europa a partir
de 1505, de autoria anônima, mas claramente inspirada nos relatos de Vespúcio:
EAMES, 2012, p. 6
No lado direito da xilogravura é possível observar
a antropofagia ritual como uma representação da “essência” comunitária dos
Tupinambás, conforme se lê na legenda: “eles não tem propriedade privada,
porque todas as coisas são em comum”, mas na frase abaixo, “eles comem uns aos
outros, e aqueles que eles matam são comidos, pois a carne humana é um alimento
comum” [EAMENS, 1922, p. 7]. Impressões como esta foram comuns em outros
relatos de mareantes que circularam no século XVI, profundamente eurocêntricas,
reduziam a constituição social dos Tupinambás a vários esteriótipos, como as
suas supostas condições pré-políticas ou pré-morais.
Nos termos da moralidade pretendida por
Morus, não foi a descrição de povos antípodas ou das riquezas advinda do
além-mar que influenciou sua escrita e sim o significado que a viagem de
Vespúcio trouxe, o rompimento da concepção unitária do cristianismo. A unidade
geográfica católica, a orbis terrarum, seria uma a Ilha-Terra formada pela
Europa, a Ásia e a África destinada por Deus aos homens e nada mais podeira
existir fora dela. Mas com as viagens de Vespúcio se “achou” um “mundo novo”, a
orbis alterius: “admitidos pelos pagãos, mas não aceito por autores cristãos,
pois podia implicar uma inaceitável e herética pluralidade de mundos”
[O’GORMAN, 1992, p. 161].
Morus, como um defensor do humanismo, fazia
várias objeções a moral unitária católica e se valia da noção de pluralidade de
mundos em seu diálogo com o paganismo clássico. Rafael Hitlodeu, a principal
personagem de Utopia, foi membro da expedição de Vespúcio e “navegou, é
verdade, mas não à moda de um Palinuro, e sim como um outro Ulisses, ou mesmo
como um Platão” [MORUS, 2004, p. 5]. Depreende-se que a filosofia greco-latina
foi a verdadeira prova que a Utopia era possível para o autor, pois ele ao
assumir o ideal platônico como modelo, “para quem queira vê-la” [PLATÃO, 2006,
p. 379 5992b] assumiu que “devo confessar que há muita coisa na República de
Utopia que eu desejaria ver imitada em nossas cidades - coisa que mais desejo
do que espero” [MORUS, 2004, pp. 131-132].
Rafael Hitlodeu se situava entre o mítico
mareante Ulisses que fez todo tipo de peripécia para retornar a Ática para
ocupar novamente seu trono e do celebre filósofo grego que escreveu o diálogo a
República como crítica a Atenas democrática e imperialista do século V a.C.
Mas, Hitlodeu não era Palinuro que navegou somente nos sonhos, ele poderia como
Ulisses regressar ao seu mundo e mudá-lo como Platão intentou fazer.
Muito embora o nome do herói de Morus
significasse “idiota”, a palavra Hidloteu deriva do radical grego “idion” que
significava na língua inglesa pessoa leiga e sem habilidade profissional, mas
como lembrou Hannah Arendt por meio das interpretações de Werner Jaeger: “O
surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera além de sua vida
privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos [vida política].
Agora cada cidadão pertence a suas ordens de existência; e há uma grande
diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio [idion] e o que é comum
[koinon] [ARENDT, 2007, p. 33].
A filocracia desejada por Platão,
decisivamente, influenciou Morus na elaboração de sua oikouméne [a casa em
comum] na busca por um rei filósofo que arbitraria sobre a justiça. Através do
trocadilho com o nome do atual rei da ilha Utopia, Ademos que significava rei
sem povo, ele buscava exemplificar a possibilidade do cidadão de participar de
“uma atitude racional comandada pelo saber” [BORGES, 2011, p. 52]. O monarca
utópico deveria estar a serviço da sociedade, com os súditos no centro da
discussão política e moral, em vez de delegar essa função a terceiros. Para
assim retomar o que Platão aludiu: “É que, quando habituados, vereis mil vezes
melhor que os de lá e, quando cada uma das imagens, reconhecereis o que ela é e
de que coisa é sombra, porque já tereis a visão da verdade a respeito das
coisas belas, justas e boas” [PLATÃO, 2006, p. 275 520c]
A filosofia platônica, ora velada ora
explícita, não foi a única fonte de inspiração para Morus, a sátira clássica
como meio para revelar a verdade através do humor definia os elementos críticos
da Utopia. Michèle Madonna-Desabazeille interpretou que a escrita “oblíqua” de
Morus situada entre a verosimilhança e a ironia permita um questionamento
racional sobre os vícios e a corrupção dos governantes de seu tempo [MADONNA-DESBAZEILLE,
2008, p. 251]. Por isso a escolha da sátira como tropos linguístico não foi
somente um recurso estilístico e sim uma opção igualmente política para
apresentar de forma sutil o que ele censurava na Inglaterra, sem sofrer
sansões.
Na companhia de seu amigo Erasmo de Roterdã,
Morus traduziu diversos textos do escritor sátiro Luciano de Samóstosa [125-181
d.C.]. No livro “História verdadeira”, Luciano debochava dos vícios políticos,
inclusive de tudo que tinha sido feito ou dito e declarava como “mentiras
variadas de maneira convincente e verossímil, mas que também cada uma das
coisas relatadas alude não sem comicidade a alguns dos antigos poetas,
historiadores e filósofos que muitas coisas prodigiosas e fabulosas escreveram”
[LUCIANO. In. SANO, 2008, p. 6].
Luciano que se apresenta como narrador de sua
história verdadeira relata a sua descoberta da ilha Nuvem-Cucolândia, imaginada
séculos antes pelo comediógrafo Aristófanes [447-385 a.C] na peça “As Aves”.
Após o seu retorno da Lua, Luciano diz: “eu me lembrei do poeta Aristófanes,
homem sábio e sincero que, sem ser acreditado, escreveu sobre eles em vão”
[LUCIANO. In. SANO, 2008, p. 16]. Na peça de Aristófanes, as personagens
Pisetero e Evélpides, cansados da vida pública de Atenas viajam mais de cem
quilômetros em busca de Tereu, homem transformado em pássaro pelos deuses e
descobrem um lugar tranquilo [topós aprágmon] entre os pássaros que lhes
oferecem saúde, juventude e fartura. Ou seja, uma “eutopia”.
No desenrolar da comédia na Nuvem-Cucolândia
ocorria uma disputa entre os deuses e os animais: “Conta-se que,
entrincheiradas nessa fortaleza, as aves proclamaram-se soberanas do mundo e
usaram as muralhas como uma barreira para impedir que os sacrifícios oferecidos
pelos homens chegassem aos céus, submetendo os deuses pela fome” [MANGUEL;
GUADALUPI, 2009, p. 309]. A postura antirreligiosa de Aristófanes valorizava
uma forma mais humana de sabedoria que contrariava à “loucura mística” de sua
época [VERNANT: VIDAL-NAQUET, 2005, p. 337]. Postura igualmente encontrada em
Morus que distinguia a religião da moral, em sua sátira, quando o rei Utopos
mandou separar a ilha do continente, transformou a antiga cidade de Abraxa em
Utopia. Com isso, segundo Michèle Madonna-Desabazeille, “Deus foi excluído da
criação da ilha, decisão humana, do rei Utopos”. Para o humanista Morus a
restituição da ação humana racional sendo divergente da função que “elimina
qualquer questionamento” do mito ou da religião, o levou a “introdução da
crítica” sobre a religião, mas não da moralidade [MADONNA-DESBAZEILLE, 2008,
pp. 251-252].
Em Aristófanes, Luciano e Morus as ilhas
imaginárias serviram como espaços de intermediação entre os deuses e os homens.
Mas, essas ilhas eram protegidas e não separadas do mundo exterior, assim a
moralidade como uma instância normativa que antecede as leis servia como
conduta cidadã. Morus que se apropriou dos meios, aparentemente,
desinteressados da vida política contidos nas duas comédias quis em sua Utopia
tornar os homens melhores adequando-os a uma nova moral pública. Na
interpretação do historiador Russel Jacoby, essas ilhas “tempera a sua
seriedade com piadas e comédia, uma tática recorrente na literatura utópica. A
paródia anuncia a seriedade” [JACOBY, 2007, p. 77].
A seriedade da Utopia seria encontrada na
formulação da vida comunitária platônica para a unidade necessária contra a
pobreza, pois: “nela haverá duas cidades mutuamente antagônicas, a dos pobres e
a dos ricos e em cada uma delas muitas outras” [PLATÃO, 2006, pp. 135-136 422a;
432a]. Morus, para superar o abismo entre as ‘duas cidades’ propôs um
equilíbrio entre o trabalho e o lazer: “Pensais, talvez, que trabalhos diários
de apenas seis horas seriam insuficientes para prover as necessidades. Longe
disso, essa jornada de trabalho é suficiente o bastante para se produzir não
apenas os bens necessários à vida, mas também aqueles que dão conforto e prazer
à existência” [MORUS, 2004, p. 58].
Interpreta-se que a Utopia representava um
duplo retorno, tanto a vida política ao modo clássico [em que a liberdade seria
definida pela cidadania] quanto o binômio trabalho-lazer como meio moralizador
da vida comunitária. Morus pretendia com seu dialogo com a antiguidade e as Referências
a viagem de Vespúcio ofertar um caminho para que os homens exercitassem a razão
e o respeito ao interesse comum através de um “pensamento da política sem
Estado e não desconhecimento do político” [MADONNA-DESBAZEILLE, 2008, p. 251].
Mas, se os interesses de Morus fossem, como contemporaneamente se diz, etnográfico,
ele encontraria um outro exemplo verificável, mais próximo de sua Utopia. Anos
depois da publicação da Utopia de Morus, Jean de Léry fez uma viagem para o
Brasil em 1556 e relatou em sua Viagem à terra do Brasil [1578]:
“Os selvagens são grandes discursadores e
costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e
quando morrem para quem fica o que deixam? — Para seus filhos se os têm,
respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. — Na
verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo
que vós outros maírs [franceses] sois grandes loucos, pois atravessais o mar e
sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto
para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem!
Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos
pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa
morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem
maiores cuidados” [LÉRY, 1961, p. 135].
A ordem social dos Tupinambás representada
por Léry, indicava a tolice em trabalhar para a acumulação de riquezas, sendo
um excesso inútil porque a Terra em comum daria a abundância necessária para se
evitar, por exemplo a fome. Segundo o antropólogo Pierre Clastres os Tupinambás
produziam para os outros sem o “desejo de posse que é de fato desejo de poder.
A sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum
espaço para o desejo de superabundância” [CLASTRES, 2003, p. 222].
Os Tupinambás, assim como outras sociedades
ameríndias, trabalhavam diariamente menos que quatro horas por dia em uma
“quase completa ociosidade” para se dedicarem a caça, pesca, festas e a guerra
em constantes atividades para impedir que a sua economia, chamada de
subsistência, não se torna-se política [CLASTRES, 2002, p. 212]. Mas, isto não
significava que não houvesse a política e sim que a forma política dos
Tupinambás impedia o surgimento da propriedade privada por sua recusa “em se
deixarem tragar pelo trabalho e pela produção, através da decisão de limitar os
estoques às necessidades sociopolíticas, da impossibilidade intrínseca da
concorrência”, pois, “de que serviria, numa sociedade primitiva, ser um rico entre
pobres?” [CLASTRES, 2002, p. 216]
Viviam em comunidade solidária interpretou
Darcy Ribeiro, mas não em uma utopia, pelo menos não nos moldes que Morus
idealizou. O que o filósofo londrino queria era reformar a monarquia pela
educação moral do rei, tal qual Platão tentou fazer com o tirano de Siracusa. O
que para ambos não acabou dando muito certo, Platão foi escravizado por anos e
Morus foi executado por rejeitar a sucessão de Ana Bolena como rainha. O que
diferia, substancialmente, a Utopia de Morus da vida comunitária dos Tupinambás
era a função da chefia indígena e do riso, tal qual Darcy Ribeiro relatou em
memórias sobre a generosidade que ilustra parte da estrutura política:
“Como não recordar, também, a generosidade de
meus amigos índios, sempre mais predispostos a dar que a guardar? Lá, ninguém
manda jamais em ninguém. No máximo, um cabeça da família, exercendo discreta
liderança, sugere que talvez seja bom fazer, agora, tal ou qual coisa. Alguém
pode até querer mandar, mas nunca será obedecido. Rirão dele” [RIBEIRO, 2010,
p. 29].
O riso ao contrário da sátira de Morus, tinha
outra função de desautorizar a dominação de um possível “tirano”. A liderança
Tupinambá não era hereditária e sua autoridade política era provisória, o
escolhido era para liderar o grupo em tempos de guerra por conta de suas
habilidades de caça e de oratória. O ethos guerreiro que a liderança Tupinambá
deveria representar se aliava ao dom da palavra para resolver disputas internas
quando existiam. Pois, como documentou Pierre Clastres: “O chefe está a serviço
da sociedade, é a sociedade em si mesma – verdadeiro lugar do poder – que
exerce como tal sua autoridade sobre o chefe” [CLASTRES, 2002, p. 224].
Embora as ideias de Morus possam
contemporaneamente ser considerada como uma utopia escapista, no século XX o
filósofo Ernst Bloch compreendeu que esta incompletude, o “ainda-não ser”,
levaria a humanidade a seguir em frente em uma “consciência antecipadora” que
refletiria uma nova ontologia [BLOCH, 2005, p. 14]. Em outra acepção, o devir
utópico foi apresentado como um entre-lugar temporal, um “aqui-agora”, como
abordaram Gilles Deleuze e Félix Guattari: “É sempre com a utopia que a
filosofia se torna política (…). A utopia não se separa do movimento infinito:
ela designa etimologicamente a desterritorialização”[DELEUZE; GUATTARI, 2007,
p. 130].
Nos termos apresentados a “consciência
antecipadora” e a “desterritorialização” projetam o mesmo desejo de transformar
a filosofia em política, algo que Thomas Morus compreendeu de forma incipiente.
Contudo, desde 1500, a política sem utopia dos Tupinambás e de tantos outras
nações ameríndias resiste, mesmo com alguns percalços, em uma luta comunitária
contra o Estado.
Referências
Álvaro Ribeiro Regiani é mestre em história
pela Universidade de Brasília, doutorando em história pela Universidade Federal
de Goiás e professor de História da América na UEG – Campus Formosa. Membro
pesquisador do GPETEC – Grupo de pesquisa em imagens técnicas.
Kênia Gusmão Medeiros é doutora em história
pela Universidade Federal de Goiás e professora de História no Instituto
Federal Goiano. Membro pesquisador do GPETEC – Grupo de pesquisa em imagens
técnicas.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução
Roberto raposo, posfácio Celso Lafer. 10ed. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2007.
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1. Rio de Janeiro, Editora UERJ: Editora Contraponto, 2005.
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Disponível em https://archive.org/details/descriptionofwoo00eame_0/page/6/mode/2up acessado em 25 de fev. de 2020.
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ResponderExcluirEssa perspectiva dos Tupinambás de uma política sem utopia é deveras interessante, pois sabemos dos riscos das utopias que quiseram se "encarnar" na realidade. Como vocês vêm essa posição nos auxiliando no ensino de História?
ResponderExcluirLeandro Mendanha e Silva
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ExcluirObrigada, Leandro. Acredito que pode auxiliar no sentido de demonstrar aos estudantes outras teorias e epistemologias políticas, e outras visões de mundo, para além da base etnocentrista ainda presente em algumas práticas de ensino. Assim, discutir as noções políticas indígenas é uma prática decolonial.Obrigada, Leandro. Acredito que pode auxiliar no sentido de demonstrar aos estudantes outras teorias e epistemologias políticas, e outras visões de mundo, para além da base etnocentrista ainda presente em algumas práticas de ensino. Assim, discutir as noções políticas indígenas é uma prática decolonial.
ExcluirKenia Gusmão Medeiros.
Muito obrigado pela pergunta Leandro Mendanha e Silva, de fato as utopias capitalistas como as prisões, as antigas cidades de operários das industrias [a exemplo a Fordlândia aqui no Brasil] e as utopias dos partidos comunistas em diversos países cometeram o mesmo erro. No meu entender a política sem utopia dos Tupinambás só foi possível graças a rejeição do poder do "um" em detrimento do múltiplo. Desse modo, não haveria vigilância do corpo, valorização da miséria pela economia e a autocracia do poder, por isso os Tupinambás, diferentemente de outras utopias não tinham esse nome como ideal a ser alcançado, mas viviam na prática esta experiência.
ExcluirEsta experiência política de uma comunidade sem a existência de uma unidade ou de unidades como a "lei", o "rei" ou a "fé" que impediam a multiplicidade podem auxiliar o ensino de história em duas situações: 1 - Que existem experiências políticas distintas no tempo e no espaço que não seguem uma lógica teleológica [Por exemplo, da tirania clássica a democracia liberal]; 2 - Que outras experiências políticas permitem uma outra forma de pensar e se conceber uma sociedade.
Quem sabe uma nova sociedade conjugada com uma educação transformadora.
Álvaro Ribeiro Regiani
Obrigado pelas respostas. Realmente é interessante pensar as questões que envolvem o múltiplo e o descentramento etnocêntrico. Parabéns para vocês.
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