Antonio José de Souza


CASO DE FAMÍLIA E SUAS FACES MESTIÇAS: NOTAS SOBRE RELAÇÕES RACIAIS


Um prelúdio necessário
Naquela tarde comum de final de março, juntei-me a um grupo modesto e empenhado em escutar as narrativas de mulheres angolanas. E entre a cor retinta linda e lustrosa, o sorriso largo e o sotaque de lusofonias com sons abertos, ora fechados; falava-nos, a pesquisadora, sobre uma cultura irmã, enquanto denunciava tantos aspectos por mim ignorados. À proporção que a interlocução avançava, ouvi sobre os mestiços angolanos, isto é: pessoas de ascendência africana e europeia, consequência da longa presença de portugueses em Angola, constituindo uma ‘raça’ distinta da branca e negra. Fiquei atento, pois a mesma medida do meu interesse pelo temário era, também, da minha insipiência.

Posto isto, o presente ensaio propõe, a partir do pensamento despretensioso, trazer elucubrações oriundas das leituras feitas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea (PPGFSC/UCSal), bem como dos estudos que fundamentaram a escrita do meu Projeto de Pesquisa. Em razão disso, assenta o meu interesse em ensaiar sobre a categoria família e suas facetas híbridas e mestiças. Portanto, trata-se mais de um exercício epistêmico em si mesmo do que a promissão em oferecer respostas contundentes.

O dado factual, um contexto
Não sei precisar o momento exato em que passei a conjecturar sobre a vida. Mas, suponho ter sido ainda na tenra infância. Vejo-me numa compilação auspiciosa e profusa de vezes em que pensei sobre o ‘quem somos’, ‘de onde viemos’ e ‘para onde vamos’. Circunstâncias várias numa lembrança uníssona em forma de perguntas clássicas, clichês que sugestionam o desafio de provocar um autoconhecimento, ou mesmo, o reconhecimento do “outro” que circunda a nossa volta. Estive à procura dos ‘outros’ “que constituem a alteridade social e física [...] os outros, os pais, os professores, as crianças, os colegas, os amigos, os inimigos” (PINEAU, 2011, p. 26); acabei por me encontrar, a bordo da “locomotiva”, deslizando pelo prefixo “‘pós’: pós-modernismo, [...] momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade.” (BHABHA, 2013, p. 19)

Estive vivendo, cruzando, atravessando o ‘além’ fronteiriço do ‘passado-presente’ num movimento exploratório, como o termo francês au-delà apreende – com maestria –, “[...] aqui e lá, de todos os lados, para lá e para cá, para frente e para trás.” (BHABHA, 2013, p. 19) Eu: primeira pessoa no plural “[...] para mostrar a pluralidade das formas e dos problemas implicados, sua complexidade, sua diversidade, suas contradições.” (PINEAU, 2011, p. 26) Definitivamente, uma realidade em que nos defrontamos “com o desafio do Outro, com o desafio da responsabilidade pelo Outro, enquanto condição de existir-para [...].” (BAUMAN, 2007, p. 13)

Nesse sentido, parto do acontecido no mês de junho do ano passado (2018) com a cantora Fabiana Cozza, que é filha de mãe branca e pai negro – e vem se notabilizando pela força interpretativa do seu canto, bem como pelo engajamento na projeção da nossa cultura, inclusive através da cultura negra, extrapolando os limites endógenos, alcançando o mundo –,  havia renunciado ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro”, após uma série de críticas sofridas, pois, segundo comentários, ela não teria pele negra legítima e justificável para interpretar a sambista. Em seu perfil em uma rede social, Fabiana publicou um desabafo em que, entre outros aspectos, explicava a decisão:

“Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente ‘politicamente correta’. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias. Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.”

Definitivamente, Cozza, você e eu, somos partícipes e também consequências das engrenagens responsáveis pela formação do povo brasileiro diverso na cor da pele, crenças, costumes em razão da mestiçagem com as populações indígenas, brancas e negras. Contudo, o conceito de miscigenação mostra-se deveras confuso, visto que o termo mestiçagem, e mesmo hibridismo, implica a mistura de elementos heterogêneos, delimitados e fixos, no entanto, o que se percebe, em determinados compêndios, é a tentativa de romantizar a composição identitária brasileira com uma suposta maleabilidade que favoreceu a mistura, produzindo, então, uma sociedade miscigenada harmônica, cândida e proporcional diante das diferenças próprias às culturas indígena, europeia e africana.

A irrefutável mestiçagem
A história do Brasil tem como marco inicial a chegada do homem primitivo na América, que, durante a sua marcha evolutiva, constituiu as estruturas tribais indígenas, tal qual os portugueses surpreenderam quando aqui atracaram. Isto posto, por volta do século XX, as expressões artísticas brasileiras estiveram impregnadas de ufanismo, com suas interpretações românticas e pacíficas do cruzamento entre os portugueses e os índios nativos, vendo na ‘união do português com a índia’ e, posteriormente, ‘amaciada pelo óleo’ da intervenção africana, uma bem-intencionada incorporação cultural, econômica e social, visto que a mistura entre raças passou a ser compreendida como um fenômeno único, original, e inteiramente favorável à sociedade brasileira, “considerada de modo geral, [...], um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena.” (FREYRE, 2004, p. 116)

No entanto, nossa identidade nacional está fatalmente vinculada a essa história pelas marcas da “[...] conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela da dependência colonial. [...] é a figura masculina dominante, cercada pela insígnia do poder, da ciência, do conhecimento e da religião [...].” (HALL, 2013, p. 33) Irrefutavelmente, a mestiçagem integra as relações raciais no Brasil, seja na sua configuração biológica (miscigenação), seja na sua configuração cultural (sincretismo cultural), ou mesmo a partir da hibridização, conceito responsável pela discussão em torno das demarcações identitárias e culturais, a fim de elucidar até que ponto os elementos embrionários são mantidos, após as combinações, uma vez que se combate a ideia de uma identidade integral, originária e unificada, sendo que “[...] a própria ideia de uma identidade nacional pura, ‘etnicamente purificada’, só pode ser atingida por meio da morte, literal e figurativa, dos complexos entrelaçamentos da história e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da nacionalidade [...].” (BHABHA, 2013, p. 25)

À vista disso, as palavras de renúncia da cantora Fabiana Cozza revelam o paradoxo de uma “[...] mestiçagem, que aparentemente aproxima e une, [mas] vem ferir o indivíduo negro que não corresponde ao tipo ideal, o qual [...] supõe a exclusão e a denegação da identidade.” (D’ADESKY, 2009, p. 69) Em outras palavras, ela renunciou, pois, a negritude que a atravessa, gravando marcas indeléveis da raça no seu corpo e memória, não é suficiente. “‘Somos daqui’, ‘somos deste lugar’, pertencemos a este lugar.” (BAUMAN, 2005, p. 24) No caso da Cozza, o veredito para sua questão identitária veio pelo “outro” que, por fim, a decretou como não sendo “uma pessoa deste lugar”, isto é, para interpretar Dona Ivone Lara, faltava-lhe a negritude correspondente, logo, negra de menos, branca de mais. Esquecendo-se que a identidade é uma demanda imbricada com a política, “tanto na atividade produtiva de cada indivíduo quanto nas condições sociais e institucionais onde esta atividade ocorre. [Sendo assim,] [...] que possibilidades nós nos permitimos – a nós e aos outros – de, sendo nós mesmos, nos transformarmos [...].” (LANE, 1998, p. 10)

Portanto, ela é “pessoa do lugar”, o que, em definitivo, não depende da minha outorga ou de quem quer que seja. Não é razoável a interferência de um dito paladino que, do alto do seu cavalo, vaga pelos complexos meandros da subjetividade e da identidade, postulando convicções e “certezas étnicas” que maculam o respeito à alteridade alheia. Afinal, trata-se de uma travessia pessoal pelas experiências culturais e identitárias que desembocam nas paulatinas ocasiões transformadoras e, muito em razão disso, reconhecemo-nos no liame com o “outro”.

Mestiçagem: caso de família
Há pouco falei brevemente da mestiçagem freyreana substanciada no clássico de 1930, “Casa-Grande & Senzala”, no qual encontra-se as formulações político-ideológicas também sobre a família patriarcal colonial brasileira, logo uma família chefiada por um patriarca – um ‘Deus Pai’ que, segundo Roudinesco (2003, p. 22) “é visto como a encarnação terrestre de um poder [...] é aquele que toma posse do filho [...] porque seu sêmen marca o corpo deste, depois porque lhe dá seu nome [...] que confere uma identidade”. Esse pai era, sem exagero, o senhor da família, exercendo primazia “sobre o corpo das famílias.” (ROUDINESCO, 2003, p. 21) Nesse sentido, famílias (no plural) é bem apropriado, pois tal regência constituía-se no âmbito da família extensa, isto é, “[...], composta pelo casal nuclear e seus filhos, escravos e agregados, representava uma forma de proteção e sobrevivência de seus componentes.” (FLEXOR, 2015, p. 32)

Cabe retomar o processo de miscigenação freyreana em que o intermédio se dava através da conjugação dos contrários, “[...] mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.” (FREYRE, 2004, p. 116) Para Flexor (2015, p.33) os negros escravizados eram beneficiados por essa convivência, tendo em vista “a inclusão de um ou mais escravos no testamento de seus donos [...]. Normalmente eram escravos da casa do senhor. Muitas escravas chegaram à condição de mãe-preta, por terem criado, ou até amamentado, meninos brancos.”

Contudo, o senhor da casa-grande e da senzala, conduzia sua família revestido, também, de uma prerrogativa déspota natural, portanto ‘um ideal de dominação’ que justificava, entre outras coisas, a circunstancial infidelidade do marido e por consequência os seus ‘bastardos’ concebidos à exceção do casamento, fora da família (ROUDINESCO, 2003). Tal construção cabe ao Pai-senhoril de Freyre que no eminente crescimento de suas famílias e das demandas de suas casas-grandes, via a exigência de mão-de-obra feminina já que “os escravos eram essenciais para sobrevivência material dessas pessoas e, como se sabe, ocupavam a senzala, embora alguns fossem selecionados para servir à casa principal.” (FLEXOR, 2015, p. 33)

Assim, segundo Chiavenato (1987) o pai-senhor ‘enfastiado’ dos serviços sexuais das índias, designam as negras mais atraentes para si. Evidentemente não poderia casar-se com elas, afinal existiam leis que proibiam a união entre branco e negra, mas não existia a proibição da prática sexual entre as raças. Nesse caso, os filhos dessa fusão – os mulatos – eram os ‘bastardos’, pois eram impedidos de serem assimilados pela família o que abalaria a estrutura de castas socias:

“Esses senhores que arrancavam as negras mais belas das senzalas, instalando-as nos porões da casa-grande e fazendo-as subir para seus quartos, engravidando-as [...], quando viam nascer seus filhos simplesmente aproveitavam a sorte para aumentar o número de escravos. E escravos de mais valor, já que os mulatos e mulatos claros eram mais cotados. Era comum que esses pais-senhores vendessem seus próprios filhos. Havia escravos de todas as cores: mas desde que nascidos do ventre das negras, escravas, não importava quem fosse o pai.” (CHIAVENATO, 1987, p. 140) 
A partir dessa constatação, resta-nos ressaltar os malefícios e prejuízos respingados imprudentemente nas relações raciais no Brasil, em grande parte decorrentes da popularização da teoria da democracia racial, que, na perspectiva de Gilberto Freyre (2004), é verificada pela liberalidade presente no encontro pluriétnico, assim como pela intercomunicação e até a composição simétrica de tradições diversas. Por isso, os índios foram “domesticados para o transcendental”, enquanto o homem branco misturava-se “gostosamente” com as mulheres de cor, multiplicando-se por meio dos filhos mestiços, e demonstrando o quanto estavam predispostos a uma “colonização híbrida”.

Dessa forma, uma vez que, pelo contato do homem branco português, se formou aqui uma sociedade agrária na estrutura econômica, híbrida de índio e mais tarde de negro, ver-se em uma “democracia racial” baseada na premissa de que a reunião das etnias e culturas aconteceu de um “modo exitoso”, provocando a formação de uma sociedade ausente de severas acomodações raciais e sem agressivos preconceitos. Entretanto, para Chiavenato (1987) a mestiçagem no Brasil, diferente do que se apreende de Freyre, por exemplo, de maneira nenhuma foi uma ‘democracia racial e social’, longe disso, pois os mulatos ‘bastardos’, oriundos do ‘híbrido’ de senhores patriarcais com negras escravizadas, são resultados de uma submissão factual: 

“O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da mulher negra, foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio. O ‘problema’ seria resolvido pela eliminação da população afrodescendente. Com o crescimento da população mulata, a raça negra iria desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população do país.”  (NASCIMENTO, 2017, p. 84)

Com base no fragmento acima do intelectual Abdias Nascimento, trago para o debate o pensamento do antropólogo Antonio Risério, reconhecendo-o como uma voz bifurcada por trazer outra perspectiva para o debate sobre miscigenação, bem como por suas críticas, em especial, a Abdias Nascimento. Nesse sentido, foi publicado no site do Jornal Folha de São Paulo, no dia 16 de dezembro de 2017, uma entrevista em que Risério faz crítica às comemorações do 20 de novembro em que integrantes do Movimento Negro empunham uma faixa com os dizeres ‘miscigenação também é crime’ em alusão ao que foi cunhado por Nascimento. Por esse ângulo, Risério diz que o slogan racialista exibido nas manifestações da Avenida Paulista é um “[...] apartheid amoroso-sexual no país”, pois com o combate à miscigenação em voga “[...] passa-se do ‘lugar de fala’ ao ‘lugar de cama’”. Isto posto, em meados da entrevista, Antonio Risério faz crítica à seguinte citação de Abdias Nascimento (2017, p. 83):

“[...] já vimos que um dos recursos utilizados foi o estupro da mulher negra pelos brancos [...], originando os produtos de sangue misto: o mulato, o pardo, o moreno, o parda-vasco, o homem-de-cor, o fusco, e assim por diante [...] o mulato prestou serviços importantes à classe dominante. [...] o erigiram como um símbolo da nossa “democracia racial”. Nele se concentram as esperanças de conjurar a “ameaça racial” representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil.”

Nesse seguimento, a entrevista passa ser centrada no objetivo de “anatomizar” e “dissecar” o registro acima nos seguintes termos: i) os mestiços também se envolveram em rebeliões combatendo a ‘elite senhorial branca’, edificando e vivendo em quilombos e constituindo lideranças em revoluções; ii) a miscigenação não é e nem pode ser um método sectário e partidário, ou seja, constituída com o intuito de branquear a população; iii) o enfoque dado por Abdias Nascimento à miscigenação é anacrônica, pois, na atualidade, não pode ser entendida como ‘violência contra a mulher negra’; iv) afinal, existem uniões interraciais (preto e branco) acontecendo como o assentimento e cumplicidade das partes; v) e por fim, a proximidade com as velhas e retorcidas estruturas do ‘racismo científico’ (séc. XIX) que acreditavam no branqueamento da população brasileira mediante a imigração e miscigenação, já que preponderaria a hereditariedade branca – esquecendo-se que se a miscigenação branqueia, também escurece, ‘assim o genocídio do negro seria o suicídio do branco’, conclui Antonio Risério.   

O “finale”
Portanto, o discurso que tencionou a renúncia de Fabiana Cozza tem um coeficiente de “expulsão”, um “princípio de exclusão: não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição. [...] Era através de suas palavras [...] o lugar onde se exercia a separação.” (FOUCAULT, 2013, pp. 10-11) Isto posto, a cantora teria “dormido negra [...], acordado ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”, revelando uma celeuma originada na diáspora negra e na miscigenação diversa no interior das sociedades “hospedeiras”. Pai preto, mãe branca e a diversidade multicultural tangível, por conseguinte, “[...] identidades plurais, mas também identidades contestadas, em um processo que é caracterizado por grandes desigualdades.” (WOODWARD, 2014, p. 22)

Por certo o episódio de contestação identitária, protagonizado por Cozza, tem um substrato nas desigualdades existentes na sociedade brasileira, pois ‘em termos de cor’ entre negros e mulatos, percebe-se uma discriminação em favor do mulato. Por isso, sabe-se que no interior da população negra e mestiça não existe o homogêneo, contudo um amálgama inicialmente político, quer dizer: “levar o mulato a se identificar não com o branco, não com a rejeição à luta contra o preconceito, mas levá-lo a aceitar a sua condição de negro e fazer com que sejam negros todos os que possuam caracteres de origem.” (FERNANDES, 2017, p. 93) Alcançamos um movimento político mais agregador e unificado, se no passado, mulatos e mestiços não estavam subjetivamente preparados para assumir uma pauta afirmativa, hoje parte do movimento negro se reconhece como heterogêneo, plural e com várias nuances, inclusive nos aspectos ideológicos, nas formas de atuação política.

Isto posto, concordo com a advertência acerca da concepção de uma “homogeneização” de diferentes termos, mas também da cor. Parece-me anacronismo, uma tentativa estúpida de retorno a uma época em que mulatos/mestiços tinham horror de ter suas situações raciais descobertas e alardeadas e, nesse sentido, era “reconfortante” ter documentado na certidão de nascimento a “cor parda”.

Estou convencido de que Fabiana Cozza, diferente de tantas negras “retintas”, vivenciou o caráter dúbio e ambíguo do mestiço, através da existência do preconceito que “tolera” a mestiçagem, considerando, no processo de hibridização do negro com o branco, a possiblidade de se tornar “agente de civilização”, pois “[...] quanto mais o negro se aproximar do branco pela tez, pelos traços do rosto, nariz afilado, cabelos lisos, lábios finos, maiores as suas possibilidades de ser aceito.” (BASTIDE; FERNANDES, 1959, apud GOMES, 2010, p. 146) No entanto, não se justifica que sua identidade seja descaracterizada, transfigurada em identidade moribunda, “morta-ainda-viva”. Portanto, é preciso “ser outro, mas com vida”, o que deixará de acontecer se o entrincheiramento persistir entre nós, negros de nuances diversas, afinal, é onde habita o torpor e o perigo.

Referências
Antonio José de Souza é Doutorando do Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea (PPGFSC - UCSal). Integrante do Grupo de Pesquisa Família, (auto)biografia e poética (FABEP/UCSal), do Laboratório LaPPRuDes - Políticas Públicas, Ruralidades e Desenvolvimento Territorial (IFBaiano), da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – (FAPESB).

BAUMAN, Z. A vida fragmentada: ensaios sobre a moral pós-moderna. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2007.
BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013.
CHIAVENATO, J. J. O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
D’ADESKY, J. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos (sic) no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
FERNANDES, F. Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, 2017.
FLEXOR, M. H. O. História da família no Brasil (parte 1). In: BASTOS, A. C. de S.; et al. (Orgs). Família no Brasil: recurso para a pessoa e sociedade. Curitiba: Juruá, 2015. p. 23-66.
FOLHA DE SÃO PAULO DIGITAL. Movimentos negros repetem lógica do racismo científico, diz antropólogo. Disponível em:
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
FREYRE, G. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49. ed. São Paulo: Global, 2004.
GOMES, N. L. Uma dupla inseparável: cabelo e cor da pele. In: BARBOSA, L. M. de A. et al. (Orgs.). De preto a afro-descendente: trajetórias de pesquisa sobre relações étnicoraciais no Brasil. São Carlos: EdUFSCar, 2010. p. 137-150.
HALL, S.  Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rüdiger, Sayonaram Amaral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
LANE, S. T. M. Prefácio. In: CIAMPA, A. da C. A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1998. p. 9-11.
NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2017.
PINEAU, G. Histórias de vida e alterância. In: SOUZA, E. C. de (Org.). Memória, (auto)biografia e diversidade: questões de método e trabalho docente. Salvador: EDUFBA, 2011. p. 25-40.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. da. (Org.).  Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.  Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 7-72.

5 comentários:

  1. Olá, Toni!
    Caso de família...há muitos casos desse em cada canto deste mundo, deste país "multirracial".De fatos, somos mesmo partícipes desse ato de formação da nossa etnia, que o tempo todo insiste em nos lembrar que PRETO tem seu lugar. Se por acaso aparecer em festa de BRANCO,muda de cor...recorre ao mimetismo! Daqui e dali as políticas afirmativas são atiçadas no lixo da falta de amor, de respeito, de tolerância e de equidade. Como esse caso exposto no seu artigo,sobre a cantora Fabiana. Se ela não tivesse consciência política e étnica, sinceramente, teria aceitado o papel da "branca menos preta". O germe do BRANQUEAMENTO no final do século XIX fez isso e foi se perpetuando em diversas mentes que alimentaram ser o branco, a fonte do saber e da cultura. Ao passo que o negro, era o ser inferior, inculto, que "empretecia" o país REPUBLICANO. Reverências sejam dadas às vozes que se levantaram e disseram NÃO AO PRECONCEITO E AO RACISMO, Mesmo quando lutar teve um alto custo: a própria vida. Estava aqui lembrando de uma ex aluna nossa em viagem recente ao Rio de Janeiro. Quando notaram a sua desenvoltura exposta no projeto apresentado pela mesma,uma colega, surpreendida, chegou a dizer "não sabia que na Bahia tinha gente inteligente"!Então, esse e outros pensamentos negativos continuam expostos nas cabeças de pessoas "branqueadas", infelizmente!

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  2. Olá, Ivanize S. Sousa Nascimento!
    Obrigado pela leitura e comentário.

    Eu estava pensando exatamente nisso depois da leitura/estudo do artigo da Gizeli e do José, intitulado: ‘Nós e os antigos: usos da literatura clássica em manuais de ensino de história oitocentistas’ – artigo disponível na plataforma do 6º Simpósio.

    Pensei na relação ‘passado e presente’ como um elo forte, apesar do tempo, do hiato. Nesse sentido, muitas das mazelas brasileiras, como o racismo, têm suas origens no passado distante, mas, por serem tão atuais, parecem “endêmicas” do nosso tempo.

    Forte abraço.

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  3. Olá José Antônio. Obrigada pela publicação de um texto tão belamente escrito, sobre um tema de tanta dor e complexidade. A abordagem, a partir da polêmica instaurada com a fala de Cozza, ressoa o quão fundo estamoa no poço do racismo doa privilégios brancos no Brasil. Lembrei muito do Aimé Cesáire ao ler teu texto. Obrigada. Carla Beatriz Meinerz.

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  4. Olá, Carla Beatriz!
    Obrigado pela leitura e comentário.

    Acho importante refletir sobre esse temário, principalmente, com as profusas declarações ofensivas do Chefe do Executivo, e seus asseclas, contra as mulheres, os negros, os gays, os pobres e nordestinos, portanto, o achincalhamento factual, público e institucional da, por assim dizer, legião dos esquecidos de nosso país.

    Forte abraço.

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