CASO DE FAMÍLIA E SUAS FACES
MESTIÇAS: NOTAS SOBRE RELAÇÕES RACIAIS
Um
prelúdio necessário
Naquela tarde comum de final de março,
juntei-me a um grupo modesto e empenhado em escutar as narrativas de mulheres
angolanas. E entre a cor retinta linda e lustrosa, o sorriso largo e o sotaque
de lusofonias com sons abertos, ora fechados; falava-nos, a pesquisadora, sobre
uma cultura irmã, enquanto denunciava tantos aspectos por mim ignorados. À
proporção que a interlocução avançava, ouvi sobre os mestiços angolanos, isto
é: pessoas de ascendência africana e europeia, consequência da longa presença
de portugueses em Angola, constituindo uma ‘raça’ distinta da branca e negra.
Fiquei atento, pois a mesma medida do meu interesse pelo temário era, também,
da minha insipiência.
Posto isto, o presente ensaio propõe, a
partir do pensamento despretensioso, trazer elucubrações oriundas das leituras
feitas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade
Contemporânea (PPGFSC/UCSal), bem como dos estudos que fundamentaram a escrita
do meu Projeto de Pesquisa. Em razão disso, assenta o meu interesse em ensaiar
sobre a categoria família e suas facetas híbridas e mestiças. Portanto, trata-se
mais de um exercício epistêmico em si mesmo do que a promissão em oferecer
respostas contundentes.
O
dado factual, um contexto
Não sei precisar o momento exato em que
passei a conjecturar sobre a vida. Mas, suponho ter sido ainda na tenra
infância. Vejo-me numa compilação auspiciosa e profusa de vezes em que pensei
sobre o ‘quem somos’, ‘de onde viemos’ e ‘para onde vamos’. Circunstâncias
várias numa lembrança uníssona em forma de perguntas clássicas, clichês que
sugestionam o desafio de provocar um autoconhecimento, ou mesmo, o
reconhecimento do “outro” que circunda a nossa volta. Estive à procura dos
‘outros’ “que constituem a alteridade social e física [...] os outros, os pais,
os professores, as crianças, os colegas, os amigos, os inimigos” (PINEAU, 2011,
p. 26); acabei por me encontrar, a bordo da “locomotiva”, deslizando pelo
prefixo “‘pós’: pós-modernismo, [...] momento de trânsito em que espaço e tempo
se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade.” (BHABHA,
2013, p. 19)
Estive vivendo, cruzando, atravessando o
‘além’ fronteiriço do ‘passado-presente’ num movimento exploratório, como o
termo francês au-delà apreende – com maestria –, “[...] aqui e lá, de todos os
lados, para lá e para cá, para frente e para trás.” (BHABHA, 2013, p. 19) Eu:
primeira pessoa no plural “[...] para mostrar a pluralidade das formas e dos
problemas implicados, sua complexidade, sua diversidade, suas contradições.”
(PINEAU, 2011, p. 26) Definitivamente, uma realidade em que nos defrontamos
“com o desafio do Outro, com o desafio da responsabilidade pelo Outro, enquanto
condição de existir-para [...].” (BAUMAN, 2007, p. 13)
Nesse sentido, parto do acontecido no mês de
junho do ano passado (2018) com a cantora Fabiana Cozza, que é filha de mãe
branca e pai negro – e vem se notabilizando pela força interpretativa do seu
canto, bem como pelo engajamento na projeção da nossa cultura, inclusive
através da cultura negra, extrapolando os limites endógenos, alcançando o mundo
–, havia renunciado ao papel de Dona
Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro”, após uma série de
críticas sofridas, pois, segundo comentários, ela não teria pele negra legítima
e justificável para interpretar a sambista. Em seu perfil em uma rede social,
Fabiana publicou um desabafo em que, entre outros aspectos, explicava a
decisão:
“Renuncio porque falar de racismo no Brasil
virou papo de gente ‘politicamente correta’. E eu sou o avesso. Minha
humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o
meu corpo. Todas são as minhas memórias. Renuncio por ter dormido negra numa
terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do
musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no
corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar
de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.”
Definitivamente, Cozza, você e eu, somos
partícipes e também consequências das engrenagens responsáveis pela formação do
povo brasileiro diverso na cor da pele, crenças, costumes em razão da
mestiçagem com as populações indígenas, brancas e negras. Contudo, o conceito
de miscigenação mostra-se deveras confuso, visto que o termo mestiçagem, e
mesmo hibridismo, implica a mistura de elementos heterogêneos, delimitados e
fixos, no entanto, o que se percebe, em determinados compêndios, é a tentativa
de romantizar a composição identitária brasileira com uma suposta maleabilidade
que favoreceu a mistura, produzindo, então, uma sociedade miscigenada
harmônica, cândida e proporcional diante das diferenças próprias às culturas
indígena, europeia e africana.
A
irrefutável mestiçagem
A história do Brasil tem como marco inicial a
chegada do homem primitivo na América, que, durante a sua marcha evolutiva,
constituiu as estruturas tribais indígenas, tal qual os portugueses
surpreenderam quando aqui atracaram. Isto posto, por volta do século XX, as
expressões artísticas brasileiras estiveram impregnadas de ufanismo, com suas
interpretações românticas e pacíficas do cruzamento entre os portugueses e os
índios nativos, vendo na ‘união do português com a índia’ e, posteriormente,
‘amaciada pelo óleo’ da intervenção africana, uma bem-intencionada incorporação
cultural, econômica e social, visto que a mistura entre raças passou a ser
compreendida como um fenômeno único, original, e inteiramente favorável à
sociedade brasileira, “considerada de modo geral, [...], um processo de
equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura
europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena.”
(FREYRE, 2004, p. 116)
No entanto, nossa identidade nacional está
fatalmente vinculada a essa história pelas marcas da “[...] conquista,
expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa
tutela da dependência colonial. [...] é a figura masculina dominante, cercada
pela insígnia do poder, da ciência, do conhecimento e da religião [...].”
(HALL, 2013, p. 33) Irrefutavelmente, a mestiçagem integra as relações raciais
no Brasil, seja na sua configuração biológica (miscigenação), seja na sua
configuração cultural (sincretismo cultural), ou mesmo a partir da
hibridização, conceito responsável pela discussão em torno das demarcações
identitárias e culturais, a fim de elucidar até que ponto os elementos
embrionários são mantidos, após as combinações, uma vez que se combate a ideia
de uma identidade integral, originária e unificada, sendo que “[...] a própria
ideia de uma identidade nacional pura, ‘etnicamente purificada’, só pode ser
atingida por meio da morte, literal e figurativa, dos complexos entrelaçamentos
da história e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da
nacionalidade [...].” (BHABHA, 2013, p. 25)
À vista disso, as palavras de renúncia da
cantora Fabiana Cozza revelam o paradoxo de uma “[...] mestiçagem, que
aparentemente aproxima e une, [mas] vem ferir o indivíduo negro que não
corresponde ao tipo ideal, o qual [...] supõe a exclusão e a denegação da
identidade.” (D’ADESKY, 2009, p. 69) Em outras palavras, ela renunciou, pois, a
negritude que a atravessa, gravando marcas indeléveis da raça no seu corpo e
memória, não é suficiente. “‘Somos daqui’, ‘somos deste lugar’, pertencemos a
este lugar.” (BAUMAN, 2005, p. 24) No caso da Cozza, o veredito para sua
questão identitária veio pelo “outro” que, por fim, a decretou como não sendo
“uma pessoa deste lugar”, isto é, para interpretar Dona Ivone Lara, faltava-lhe
a negritude correspondente, logo, negra de menos, branca de mais. Esquecendo-se
que a identidade é uma demanda imbricada com a política, “tanto na atividade
produtiva de cada indivíduo quanto nas condições sociais e institucionais onde
esta atividade ocorre. [Sendo assim,] [...] que possibilidades nós nos
permitimos – a nós e aos outros – de, sendo nós mesmos, nos transformarmos
[...].” (LANE, 1998, p. 10)
Portanto, ela é “pessoa do lugar”, o que, em
definitivo, não depende da minha outorga ou de quem quer que seja. Não é
razoável a interferência de um dito paladino que, do alto do seu cavalo, vaga
pelos complexos meandros da subjetividade e da identidade, postulando
convicções e “certezas étnicas” que maculam o respeito à alteridade alheia.
Afinal, trata-se de uma travessia pessoal pelas experiências culturais e
identitárias que desembocam nas paulatinas ocasiões transformadoras e, muito em
razão disso, reconhecemo-nos no liame com o “outro”.
Mestiçagem:
caso de família
Há pouco falei brevemente da mestiçagem
freyreana substanciada no clássico de 1930, “Casa-Grande & Senzala”, no
qual encontra-se as formulações político-ideológicas também sobre a família
patriarcal colonial brasileira, logo uma família chefiada por um patriarca – um
‘Deus Pai’ que, segundo Roudinesco (2003, p. 22) “é visto como a encarnação
terrestre de um poder [...] é aquele que toma posse do filho [...] porque seu
sêmen marca o corpo deste, depois porque lhe dá seu nome [...] que confere uma
identidade”. Esse pai era, sem exagero, o senhor da família, exercendo primazia
“sobre o corpo das famílias.” (ROUDINESCO, 2003, p. 21) Nesse sentido, famílias
(no plural) é bem apropriado, pois tal regência constituía-se no âmbito da
família extensa, isto é, “[...], composta pelo casal nuclear e seus filhos,
escravos e agregados, representava uma forma de proteção e sobrevivência de
seus componentes.” (FLEXOR, 2015, p. 32)
Cabe retomar o processo de miscigenação
freyreana em que o intermédio se dava através da conjugação dos contrários,
“[...] mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais
profundo: o senhor e o escravo.” (FREYRE, 2004, p. 116) Para Flexor (2015,
p.33) os negros escravizados eram beneficiados por essa convivência, tendo em
vista “a inclusão de um ou mais escravos no testamento de seus donos [...].
Normalmente eram escravos da casa do senhor. Muitas escravas chegaram à
condição de mãe-preta, por terem criado, ou até amamentado, meninos brancos.”
Contudo, o senhor da casa-grande e da
senzala, conduzia sua família revestido, também, de uma prerrogativa déspota
natural, portanto ‘um ideal de dominação’ que justificava, entre outras coisas,
a circunstancial infidelidade do marido e por consequência os seus ‘bastardos’
concebidos à exceção do casamento, fora da família (ROUDINESCO, 2003). Tal
construção cabe ao Pai-senhoril de Freyre que no eminente crescimento de suas
famílias e das demandas de suas casas-grandes, via a exigência de mão-de-obra
feminina já que “os escravos eram essenciais para sobrevivência material dessas
pessoas e, como se sabe, ocupavam a senzala, embora alguns fossem selecionados
para servir à casa principal.” (FLEXOR, 2015, p. 33)
Assim, segundo Chiavenato (1987) o pai-senhor
‘enfastiado’ dos serviços sexuais das índias, designam as negras mais atraentes
para si. Evidentemente não poderia casar-se com elas, afinal existiam leis que
proibiam a união entre branco e negra, mas não existia a proibição da prática
sexual entre as raças. Nesse caso, os filhos dessa fusão – os mulatos – eram os
‘bastardos’, pois eram impedidos de serem assimilados pela família o que
abalaria a estrutura de castas socias:
“Esses senhores que arrancavam as negras mais
belas das senzalas, instalando-as nos porões da casa-grande e fazendo-as subir
para seus quartos, engravidando-as [...], quando viam nascer seus filhos
simplesmente aproveitavam a sorte para aumentar o número de escravos. E
escravos de mais valor, já que os mulatos e mulatos claros eram mais cotados.
Era comum que esses pais-senhores vendessem seus próprios filhos. Havia
escravos de todas as cores: mas desde que nascidos do ventre das negras,
escravas, não importava quem fosse o pai.” (CHIAVENATO, 1987, p. 140)
A partir dessa constatação, resta-nos
ressaltar os malefícios e prejuízos respingados imprudentemente nas relações
raciais no Brasil, em grande parte decorrentes da popularização da teoria da
democracia racial, que, na perspectiva de Gilberto Freyre (2004), é verificada
pela liberalidade presente no encontro pluriétnico, assim como pela
intercomunicação e até a composição simétrica de tradições diversas. Por isso,
os índios foram “domesticados para o transcendental”, enquanto o homem branco
misturava-se “gostosamente” com as mulheres de cor, multiplicando-se por meio
dos filhos mestiços, e demonstrando o quanto estavam predispostos a uma
“colonização híbrida”.
Dessa forma, uma vez que, pelo contato do
homem branco português, se formou aqui uma sociedade agrária na estrutura
econômica, híbrida de índio e mais tarde de negro, ver-se em uma “democracia
racial” baseada na premissa de que a reunião das etnias e culturas aconteceu de
um “modo exitoso”, provocando a formação de uma sociedade ausente de severas
acomodações raciais e sem agressivos preconceitos. Entretanto, para Chiavenato
(1987) a mestiçagem no Brasil, diferente do que se apreende de Freyre, por
exemplo, de maneira nenhuma foi uma ‘democracia racial e social’, longe disso,
pois os mulatos ‘bastardos’, oriundos do ‘híbrido’ de senhores patriarcais com
negras escravizadas, são resultados de uma submissão factual:
“O processo de miscigenação, fundamentado na
exploração sexual da mulher negra, foi erguido como um fenômeno de puro e
simples genocídio. O ‘problema’ seria resolvido pela eliminação da população
afrodescendente. Com o crescimento da população mulata, a raça negra iria
desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população do país.” (NASCIMENTO, 2017, p. 84)
Com base no fragmento acima do intelectual
Abdias Nascimento, trago para o debate o pensamento do antropólogo Antonio
Risério, reconhecendo-o como uma voz bifurcada por trazer outra perspectiva
para o debate sobre miscigenação, bem como por suas críticas, em especial, a
Abdias Nascimento. Nesse sentido, foi publicado no site do Jornal Folha de São
Paulo, no dia 16 de dezembro de 2017, uma entrevista em que Risério faz crítica
às comemorações do 20 de novembro em que integrantes do Movimento Negro empunham
uma faixa com os dizeres ‘miscigenação também é crime’ em alusão ao que foi
cunhado por Nascimento. Por esse ângulo, Risério diz que o slogan racialista
exibido nas manifestações da Avenida Paulista é um “[...] apartheid
amoroso-sexual no país”, pois com o combate à miscigenação em voga “[...]
passa-se do ‘lugar de fala’ ao ‘lugar de cama’”. Isto posto, em meados da
entrevista, Antonio Risério faz crítica à seguinte citação de Abdias Nascimento
(2017, p. 83):
“[...] já vimos que um dos recursos utilizados
foi o estupro da mulher negra pelos brancos [...], originando os produtos de
sangue misto: o mulato, o pardo, o moreno, o parda-vasco, o homem-de-cor, o
fusco, e assim por diante [...] o mulato prestou serviços importantes à classe
dominante. [...] o erigiram como um símbolo da nossa “democracia racial”. Nele
se concentram as esperanças de conjurar a “ameaça racial” representada pelos
africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da
branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o
início da liquidação da raça negra no Brasil.”
Nesse seguimento, a entrevista passa ser
centrada no objetivo de “anatomizar” e “dissecar” o registro acima nos
seguintes termos: i) os mestiços também se envolveram em rebeliões combatendo a
‘elite senhorial branca’, edificando e vivendo em quilombos e constituindo
lideranças em revoluções; ii) a miscigenação não é e nem pode ser um método
sectário e partidário, ou seja, constituída com o intuito de branquear a
população; iii) o enfoque dado por Abdias Nascimento à miscigenação é
anacrônica, pois, na atualidade, não pode ser entendida como ‘violência contra
a mulher negra’; iv) afinal, existem uniões interraciais (preto e branco)
acontecendo como o assentimento e cumplicidade das partes; v) e por fim, a
proximidade com as velhas e retorcidas estruturas do ‘racismo científico’ (séc.
XIX) que acreditavam no branqueamento da população brasileira mediante a
imigração e miscigenação, já que preponderaria a hereditariedade branca –
esquecendo-se que se a miscigenação branqueia, também escurece, ‘assim o
genocídio do negro seria o suicídio do branco’, conclui Antonio Risério.
O
“finale”
Portanto, o discurso que tencionou a renúncia
de Fabiana Cozza tem um coeficiente de “expulsão”, um “princípio de exclusão:
não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição. [...] Era através de
suas palavras [...] o lugar onde se exercia a separação.” (FOUCAULT, 2013, pp.
10-11) Isto posto, a cantora teria “dormido negra [...], acordado ‘branca’ aos
olhos de tantos irmãos”, revelando uma celeuma originada na diáspora negra e na
miscigenação diversa no interior das sociedades “hospedeiras”. Pai preto, mãe
branca e a diversidade multicultural tangível, por conseguinte, “[...]
identidades plurais, mas também identidades contestadas, em um processo que é
caracterizado por grandes desigualdades.” (WOODWARD, 2014, p. 22)
Por certo o episódio de contestação
identitária, protagonizado por Cozza, tem um substrato nas desigualdades
existentes na sociedade brasileira, pois ‘em termos de cor’ entre negros e
mulatos, percebe-se uma discriminação em favor do mulato. Por isso, sabe-se que
no interior da população negra e mestiça não existe o homogêneo, contudo um
amálgama inicialmente político, quer dizer: “levar o mulato a se identificar
não com o branco, não com a rejeição à luta contra o preconceito, mas levá-lo a
aceitar a sua condição de negro e fazer com que sejam negros todos os que
possuam caracteres de origem.” (FERNANDES, 2017, p. 93) Alcançamos um movimento
político mais agregador e unificado, se no passado, mulatos e mestiços não
estavam subjetivamente preparados para assumir uma pauta afirmativa, hoje parte
do movimento negro se reconhece como heterogêneo, plural e com várias nuances,
inclusive nos aspectos ideológicos, nas formas de atuação política.
Isto posto, concordo com a advertência acerca
da concepção de uma “homogeneização” de diferentes termos, mas também da cor.
Parece-me anacronismo, uma tentativa estúpida de retorno a uma época em que
mulatos/mestiços tinham horror de ter suas situações raciais descobertas e
alardeadas e, nesse sentido, era “reconfortante” ter documentado na certidão de
nascimento a “cor parda”.
Estou convencido de que Fabiana Cozza,
diferente de tantas negras “retintas”, vivenciou o caráter dúbio e ambíguo do
mestiço, através da existência do preconceito que “tolera” a mestiçagem,
considerando, no processo de hibridização do negro com o branco, a possiblidade
de se tornar “agente de civilização”, pois “[...] quanto mais o negro se
aproximar do branco pela tez, pelos traços do rosto, nariz afilado, cabelos
lisos, lábios finos, maiores as suas possibilidades de ser aceito.” (BASTIDE;
FERNANDES, 1959, apud GOMES, 2010, p. 146) No entanto, não se justifica que sua
identidade seja descaracterizada, transfigurada em identidade moribunda,
“morta-ainda-viva”. Portanto, é preciso “ser outro, mas com vida”, o que
deixará de acontecer se o entrincheiramento persistir entre nós, negros de
nuances diversas, afinal, é onde habita o torpor e o perigo.
Referências
Antonio José de Souza é Doutorando do
Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea (PPGFSC -
UCSal). Integrante do Grupo de Pesquisa Família, (auto)biografia e poética
(FABEP/UCSal), do Laboratório LaPPRuDes - Políticas Públicas, Ruralidades e
Desenvolvimento Territorial (IFBaiano), da Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/as – ABPN e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado da Bahia – (FAPESB).
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Olá, Toni!
ResponderExcluirCaso de família...há muitos casos desse em cada canto deste mundo, deste país "multirracial".De fatos, somos mesmo partícipes desse ato de formação da nossa etnia, que o tempo todo insiste em nos lembrar que PRETO tem seu lugar. Se por acaso aparecer em festa de BRANCO,muda de cor...recorre ao mimetismo! Daqui e dali as políticas afirmativas são atiçadas no lixo da falta de amor, de respeito, de tolerância e de equidade. Como esse caso exposto no seu artigo,sobre a cantora Fabiana. Se ela não tivesse consciência política e étnica, sinceramente, teria aceitado o papel da "branca menos preta". O germe do BRANQUEAMENTO no final do século XIX fez isso e foi se perpetuando em diversas mentes que alimentaram ser o branco, a fonte do saber e da cultura. Ao passo que o negro, era o ser inferior, inculto, que "empretecia" o país REPUBLICANO. Reverências sejam dadas às vozes que se levantaram e disseram NÃO AO PRECONCEITO E AO RACISMO, Mesmo quando lutar teve um alto custo: a própria vida. Estava aqui lembrando de uma ex aluna nossa em viagem recente ao Rio de Janeiro. Quando notaram a sua desenvoltura exposta no projeto apresentado pela mesma,uma colega, surpreendida, chegou a dizer "não sabia que na Bahia tinha gente inteligente"!Então, esse e outros pensamentos negativos continuam expostos nas cabeças de pessoas "branqueadas", infelizmente!
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirOlá, Ivanize S. Sousa Nascimento!
ResponderExcluirObrigado pela leitura e comentário.
Eu estava pensando exatamente nisso depois da leitura/estudo do artigo da Gizeli e do José, intitulado: ‘Nós e os antigos: usos da literatura clássica em manuais de ensino de história oitocentistas’ – artigo disponível na plataforma do 6º Simpósio.
Pensei na relação ‘passado e presente’ como um elo forte, apesar do tempo, do hiato. Nesse sentido, muitas das mazelas brasileiras, como o racismo, têm suas origens no passado distante, mas, por serem tão atuais, parecem “endêmicas” do nosso tempo.
Forte abraço.
Olá José Antônio. Obrigada pela publicação de um texto tão belamente escrito, sobre um tema de tanta dor e complexidade. A abordagem, a partir da polêmica instaurada com a fala de Cozza, ressoa o quão fundo estamoa no poço do racismo doa privilégios brancos no Brasil. Lembrei muito do Aimé Cesáire ao ler teu texto. Obrigada. Carla Beatriz Meinerz.
ResponderExcluirOlá, Carla Beatriz!
ResponderExcluirObrigado pela leitura e comentário.
Acho importante refletir sobre esse temário, principalmente, com as profusas declarações ofensivas do Chefe do Executivo, e seus asseclas, contra as mulheres, os negros, os gays, os pobres e nordestinos, portanto, o achincalhamento factual, público e institucional da, por assim dizer, legião dos esquecidos de nosso país.
Forte abraço.