Katty Cristina Lima Sá e Thaís da Silva Tenório


CULTURA, POLÍTICA E VOZ PARA AS MINORIAS: OS DESFILES CARNAVALESCOS COMO FONTE PARA O ENSINO DE HISTÓRIA


As manifestações artísticas e culturais, como filmes, canções, encenações teatrais etc., são reflexos das sociedades em que foram geradas, ou mais especificamente, dos grupos sociais que as produziram. Deste modo, elas apresentam os ideários e as reivindicações de seus idealizadores. No Brasil, o Carnaval, nossa maior festa cultural, costuma representar os assuntos e figuras que estão em alta no momento desse evento. Os foliões vão as ruas festejar em “bloquinhos” com fantasias que remetem aos memes circulantes nas redes sociais, ou seja, se vestem de políticos, personagens de televisão e seriados ou de “gafes” feitas por integrantes das elites. As escolas de samba, por sua vez, utilizam de brilho e alegorias para trazer temas políticos, culturais e sociais para as “passarelas do samba” de suas respectivas cidades.

Os gigantes, elaborados e majestosos carros alegóricos, as fantasias ornamentadas e outras técnicas elaboradas por carnavalescos profissionais encantam o público espalhado pelo país – que acompanha os desfiles pela televisão – com sua beleza e traz à tona questões diversas, sejam eles de ordem política, social e cultural. Muitas das principais agremiações, localizadas nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, são representadas por figuras icônicas ligadas às elites culturais, contudo, suas sedes e quadras continuam em bairros periféricos e procuram apresentar parte das realidades de tais locais em suas apresentações anuais. Em 1989, por exemplo, a crise econômica e suas consequências para os mais pobres foram debatidas pela Grande Rio a partir do enredo “Ratos e Urubus, larguem minhas fantasias”, em que o Cristo Redentor apareceu na “avenida do samba” trajado de morador de rua.

Nesse sentido, compreendemos tais manifestações por dois ângulos: o primeiro é o da música popular, cuja letra é uma importante fonte a ser explorada no ensino história, tendo em vista seu caráter simbólico no conjunto com a melodia e em sua expressão durante o desfile. Já o segundo observa a apresentação em si como um conjunto repleto de signos e representações, capazes de promover emoções e os sentidos do ver, ouvir, viver e sentir. Tudo isso, somado com a música, plasma nas avenidas a emoção que busca gerar nos espectadores.

Tendo em vista que tal expressão carnavalesca é uma forma de manifestação popular que está intrínseca no imaginário brasileiro, mesmo das populações que estão distante dos centros urbanos em que elas ocorrem, nós selecionamos o desfile realizado em 2019 pela escola de samba do Rio de Janeiro Estação Primeira de Mangueira, juntamente com a letra de seu samba-enredo, como fonte histórica para promover a discussão acerca de identidades étnico-raciais, racismo e lugar de fala de grupos minoritários na escrita da história. No ano mencionado, a agremiação carioca apresentou no Sambódromo Marquês de Sapucaí o enredo “História para ninar gente grande”, cuja letra do samba foi intitulada “Eu quero um Brasil que não está no retrato”. O objetivo do desfile era dar voz e contar as histórias que, por vezes, os livros de História ignoraram: das mulheres, negros, indígenas, pobres e outras minorias.  Desta forma, procurou-se abandonar concepções de cultura, saberes e a colocação de heróis provenientes das classes dominantes e colocou-se em pauta a valorização isonômica das diversas manifestações culturais e o protagonismo de figuras que não possuem ascendência europeia.

Com alegorias que representavam os indígenas que lutaram contra os colonizadores portugueses, que questionaram o papel icônico e embranquecido atribuído aos bandeirantes, e que enalteciam a resistência dos quilombos brasileiros, o refrão do samba dizia: “Brasil, meu nego; Deixa eu te contar; A história que a história não conta; O avesso do mesmo lugar; Na luta é que a gente se encontra” [FIRMINO, et.al., 2019]. Já o último verso da canção chamou atenção pela referência à vereadora carioca Marielle Franco [1979-2018], assassinada pela milícia da cidade do Rio de Janeiro, que diz: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”. Esta personagem de nosso tempo presente era uma mulher negra nascida em uma das comunidades que compõe o Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, que além de socióloga foi a vereadora com a quinta maior votação de sua cidade nos pleitos municipais de 2016. Por seu trabalho e ativismo social, Marielle foi reconhecida internacionalmente e virou um símbolo de luta e resistência no Brasil.

Assim como na letra do samba, ela apareceu no desfile ao lado de outras figuras importantes para as resistências negra e indígena, que a história oficial silenciou em sua narrativa escrita por elites brancas e burguesas. Durante seu desfile, a Estação Primeira de Mangueira desconstruiu a ideia de que as maiores figuras históricas do país, aqueles que conduziram o passado nacional e representam a nação, são europeias, como ocorre com Pedro Álvares Cabral, Dom Pedro I, a Princesa Isabel ou Marechal Floriano Peixoto. Em contrapartida, mencionada no enredo e na alegoria, temos a figura de Luiza Mahin, ex-escrava que se tornou uma das principais lideranças na luta contra a escravidão na Bahia no início do século XIX.

Sabendo a importância que a história do país tem para a formação da identidade e do caráter do indivíduo como pertencente a um território-nação, propomos a utilização do samba enredo como material para uma aula, na qual, a partir da exposição de trechos do desfile e da leitura do samba de enredo, seja possível discutir as identidades nacionais, étnico-raciais gestadas. Desta forma, intuímos confrontar os saberes concebidos através de uma vertente histórica, desmistificando as raízes e trazendo à luz e dando voz a personalidades outrora silenciadas.

O audiovisual na no processo de aprendizagem
Nosso ideal de educação, proveniente do Iluminismo do século XVIII, atribui a instrução o objetivo de criar cidadãos críticos e tolerantes, capacitados para a vida social e profissional e, ainda que a educação seja um processo integral, contínuo, vivido em todos os ambientes sociais, foi atribuído ao espaço escolar o papel central na formação de novas gerações. É na escola que as crianças passam boa parte de seus dias e, por isso, foi atribuída aos educadores a função de transmitir tanto os conhecimentos científicos específicos de sua área como os críticos sobre o mundo que nos cerca.

No entanto, o modelo educacional utilizado no Brasil pouco foi alterado desde o século XIX: os alunos são divididos em classes aparentemente homogêneas, tendo como base um padrão de desenvolvimento, permanecem sentados em fileiras, passivos e em silêncio, pois o foco do aprendizado está na fala do professor. Sentados em salas cinza, os estudantes acabam assumindo papeis passivos e precisam decorar conteúdos teóricos, que não parecem ter quaisquer aplicações na vida cotidiana, fora para a resolução de questões das avaliações disciplina em questão.

Mesmo quando se tenta inovar em com a utilização de outros recursos didáticos, como o cinema, a Internet e o Datashow, pouco se faz, pois não há tentativa de romper com sistema vigente, apenas de trocar sua aparência. Persistem as aulas expositivas, onde o cinema é utilizado meramente como um lazer, a Internet para pesquisas sem auxilio e os slides projetados pelo Datashow apenas substituem a escrita de textos para cópia no quadro.  Fora isso, os estudantes persistem amedrontados pelo processo de avaliação ao qual são submetidos, de modo que eles se esforçam apenas em decorar informações que depois serão esquecidas.

Tendo isso em vista, propomos a utilização da transmissão dos desfiles de escolas de samba, associado com a letra de seu samba enredo, como forma de estimular a análise de um conjunto de fonte diversificado: a música, a letra, a execução do desfile e os elementos que o compõe [fantasia, alegorias, carros, figuras representadas etc.]. O professor deve estimular os alunos a responderem questões tais quais: “Que mensagem esses elementos procuram passar?”, “Como os mesmos estão articulados?”,“Quais as raízes da manifestação artístico-cultural estudada?”. O próprio histórico dos desfiles de escolas de samba, estimulado pelo governo de Getulio Vargas [1930-1945], para estimular a criação de uma identidade nacional é um ponto que deve ser contrastado com as criticas sociais e políticas feitas pelas mesmas instituições.

A proposta de ensino aqui defendida se apoia na Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003 [BRASIL, 2003], na qual o estudo da História da África e dos Africanos e a contribuição da cultura negra na formação do povo brasileiro tornam-se obrigatórias no currículo escolar. A partir dessa lei, estabeleceu-se uma reivindicação dos direitos específicos à população negra, como uma espécie de compensação a uma desvantagem social historicamente produzida por meio de mecanismos de dominação, sendo uma luta constante a partir dos anos de 1990 e ganhando cada vez mais visibilidade [PEREIRA, 2005]. Além disso, observamos também as resoluções da Base Nacional Curricular [BNCC] que, ao estabelecer como objetivo máximo da educação brasileira a obtenção de competências, redirecionou o sistema de ensino brasileiro às pedagogias ativas e participativas, formadoras de cidadãos ativos e cientes da realidade e dos problemas sociais que os cercam. 

Nesse ínterim, o objetivo de compreender a história e promover um debate sobre as identidades étnico-raciais não apenas se tornou plausível, como adquiriu importância significativa ao proporcionar um ensino da História, e das outras ciências humanas e sociais, uma maior consciência histórica e cultural. Assim, proposta tem sua justificativa solidificada pela importância e significado que a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Indigena, pela Lei 10.639/03 e Lei Nº 11.645/08 representam para a produção de narrativas e interpretações a respeito da História do Brasil.

A respeito do trato pedagógico perante a diversidade, Gomes [2001, p. 87] afirma que: “Ainda nos falta muito para compreendermos que o fato de sermos diferentes uns dos outros é o que mais nos aproxima e o que nos torna mais iguais. Sendo assim, a prática pedagógica deve considerar a diversidade de classe, sexo, idade, raça, cultura, crenças, etc., presentes na vida da escola e pensar (e repensar) o currículo e os conteúdos escolares a partir dessa realidade tão diversa. [...] A construção de práticas democráticas e não preconceituosas implica o reconhecimento do direito à diferença, e isso inclui as diferenças raciais. Aí, sim, estaremos articulando Educação, cidadania e raça” [GOMES, 2001: 87].

Desta forma, compreendemos que as mudanças curriculares não operam sozinhas as transformações necessárias, e sim junto a esta devem estar as práticas desenvolvidas pelas escolas e pelo corpo docente, de maneira que sejam reconhecidas as pluralidades existentes no seio nacional. Tal reconhecimento, baseado no respeito e na representatividade, é guiado de forma que o educando reconheça através do processo de ensino/aprendizagem suas raízes, valorizando a riqueza que existe na diversidade étnico-racial e na cultural.

Entretanto, antes de detalharmos o processo de desenvolvimento desta proposta, é necessário salientar que o plano de ensino elaborado e a atuação do professor junto à instituição têm como principal objetivo debater os temas propostos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais [PCNs] de História de maneira a superar, ainda que brevemente, o modelo mais comum de aula propostos pelas instituições públicas de ensino atuais. Isto ocorre por meio de uma ação pedagógica que, somada à realidade da escola e de seus educandos, pode ser eficaz para tanto. Porém, é preciso ressaltar que a estrutura da instituição, pode ter o resultado prejudicado, não podendo o plano de ensino ser executado por completo, conforme sua organização previa. De todo modo, este planejamento poderá ser reajustado à realidade encontrada na medida em que seja possível, sem prejuízos consideráveis ao desenvolvimento da ação.

Ao se debruçar sobre fontes audiovisuais e culturais, como vídeos fotos e desfiles de carnaval, o professor deve se valer de uma série de procedimentos metodológicos. No caso da presente proposta de ensino é importante a produção de debates que levem em conta o argumento geral e a problemática do samba de enredo, assim como a análise dos mecanismos internos na produção do desfile de forma a compreender a natureza específica dos gêneros musicais representativos.

Assim, a análise do discurso musical e imagético o desfile de carnaval da escola Estação Primeira de Mangueira em 2019, pode ser compreendido como  formador de uma certa imagem do Brasil, sendo perscrutado e comparado ao modelo de identidade nacional proposto pelas instituições governamentais de cultura e comunicação, do governo por toda a trajetória da historiografia nacional, podendo assim revelar o atrito que se materializou entre uma versão oficial e a versão do povo, que da voz aos silenciados e exalta mitos representativos de uma maioria não burguesa.

Referências
Katty Cristina Lima Sá, mestranda em História Comparada pela UFRJ e integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS). E-mail: katty@getempo.org.
Thaís da Silva Tenório, professora de História, mestra pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFRN) Integrante do grupo de estudos Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BRASIL. Lei nº10639 de 9 de janeiro de 2003. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicos Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. Brasília: MEC/SECADI. 2005.
____. Estatuto da Igualdade Racial – Lei 12.288 de 20 de julho de 2010.
____. Lei 11.645 de 10 de março de 2008. Da obrigatoriedade do ensino da História e Cultura AfroBrasileira e Indígena.
____. Base Nacional Curricular: a educação é a base. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso: 15 abril. 2020.
GOMES, N.L. Educação cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da diversidade. In: Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. CAVALLEIRO, Eliane. São Paulo: Summus, 2001.
FIRMINO, Danilo [et.al.]. História Pra Ninar Gente Grande. 2019. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/>. Acesso: 18 abril. 2020.

Audiovisual:
ESCOLAS DE SAMPA SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO. Desfile completo da Estação Primeira De Mangueira 2019.  2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ote1-JS9gwM>. Acesso em 08 de abril de 2020.

4 comentários:

  1. Parabéns pelo texto! Acredito que as escolas de samba, e principalmente os sambas enredos são de grande valia no ensino de História. Ano passado, inclusive, escrevi um artigo trabalhando justamente o samba enredo ""História pra ninar gente grande" para se trabalhar fatos históricos em sala de aula.

    Atenciosamente, Edivaldo Rafael de Souza.

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  2. Prezado Edivaldo,

    Agradecemos os elogios e a leitura de nosso texto. Aproveitamos a ocasião para perdir, por gentileza, as referências do seu artigo, pois será uma leitura bastante proveitosa.

    Atenciosamente,

    Katty Sá e Thaís Tenório.

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  3. Larissa Maria dos Santos Baia18 de maio de 2020 às 20:28

    Caras autoras, parabenizo pelo texto e pela problemática levantada, a qual me chamou atenção que o ensino/aprendizagem vai muito além das paredes da escola e de livros didáticos, tendo em vista que nossa cultura é a historia viva e repleta de representatividade. Dessa forma, tendo em vista a importância do uso das manifestações culturais como meio de ensino da Historia e do educando reconhecer, no processo de aprendizagem, suas raízes e as riquezas das diversidades étnicas-raciais, como consolidar estas práticas no trabalho dos professores, considerando que eles são os principais agentes desta construção?
    Atenciosamente, Larissa Maria dos Santos Baia

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  4. Prezada Larissa,

    Agradecemos em imenso por sua contribuição e interação com o nosso trabalho. Pensamos ser possível consolidar tais práticas na docência tomando por base a assertiva de Freitas Neto (2004,p.66), quando este afirma que "deve-se abandonar a visão do conhecimento específico da disciplina, sem abrir mão dos repertórios e recursos de cada área de conhecimento, e, ao mesmo tempo, incorporar o papel de formação exercido pelo educador, tratando de temas e questões que ultrapassem o conteúdo programático, por meio de temas transversais". Entendemos assim que, é primordial que o professor esteja aberto para incorporar novas práticas ao seu programa de ensino. É sabido da precariedade da educação pública e dos poucos recursos disponíveis para os profissionais utilizarem. Porém, a subjetividade do cotidiano vai além de aparelhos eletrônicos em sala. Programas de TV, letras de músicas e o cotidiano podem servir de referência para pensar e articular os conteúdos, partindo sempre de um olhar interdisciplinar. As recentes pesquisas na área do ensino têm demonstrado a importância de se inserir outros tipos de linguagens nas salas de aula. Não obstante, é através de narrativas artísticas (nos referimos aqui a todas as formas de arte: música, literatura, pictórica) remonta a tatos e épocas vividos, explorando a imaginação por meio da leitura e a interpretação dos signos históricos presentes.

    Atenciosamente,

    Katty Sá e Thaís Tenorio.

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