Graziella Fernanda S. Queiroz e Manoel Caetano do N. Júnior


DA EXCEÇÃO À IDENTIDADE: MANUTENÇÃO DE APELIDO E SOBRENOME AFRICANO ENTRE SUJEITOS EM PERNAMBUCO DESDE O SÉCULO XIX



A título de apresentação: o termo africano cazumbá em movimento
O presente texto sugere caminhos explicativos para a excepcionalidade e circularidade do termo africano “cazumbá” entre apelidos e sobrenomes de sujeitos de variados lugares sociais a partir do século XIX em Pernambuco. Desde práticas de nomeação em realidade colonizada a representação e apropriação de palavras de origem africana na cultura, elucidaremos possíveis explicações determinadas historicamente acerca deste emaranhado em que se coloca tal temática. Da mesma maneira, examinamos as conjunturas a respeito da manutenção do termo cazumbá enquanto sobrenome nos dias atuais entre grupos no referido Estado. Através de heterogêneo suporte bibliográfico e documental tais como jornais, documentação cartorial e fontes orais, são indicadas possibilidades para a manutenção do termo (cazumbá) no nome bem como sobre a constituição de afirmação identitária e parental na contemporaneidade entre Cazumbás que não necessariamente pertencem ao mesmo grupo familiar. 

Das práticas nominativas para afrodescendentes em contexto colonial aos poucos nomes africanos ocorrentes na cultura
A maioria dos sobrenomes que circundam pela sociedade brasileira são de ancestralidade europeia. Só de Silvas, foram contabilizados mais 3 milhões em 2014, conforme plataforma Forebears. Sem falar dos Santos, Souzas, Limas, Costas, Pereiras, Oliveiras. A composição histórica, cultural e étnica é formada (ainda que desigualmente no que concerne a poderes) por povos originários (chamados de índios), afrodescendentes e eurodescendentes, porém o fato da colonialidade e eurocentrismo tornaram incomum encontrar pessoas com nome ou sobrenome africano no Brasil. Para se ter uma ideia, antes mesmo de africanos desembarcarem dos navios em situação de escravizados, um primeiro batismo era realizado. Eram-lhes concedidos novos nomes, europeus e de preferência cristãos e àqueles não tinham direitos a sobrenomes (SOARES, 2000). As práticas de nomeação que se seguiram já em contexto de uma sociedade mestiça e pouco a pouco egressa do escravismo diziam muito mais respeito a homenagens a antepassados brasileiros, sobrenome ligado a engenho trabalhado, à família de donos ou sobrenome de força territorial que podia indicar boas relações, prestígio social (WEIMER,2007). E já que a tipologia dos nomes e sobrenomes mais recorrentes eram europeus, continuou-se com a prática sem necessariamente pensar tal questão ou negar uma identificação com África, tendo em vista que a tal ponto nomes europeus já estavam suficientemente incorporados no cotidiano.      

A questão verificada, entretanto, não nega a circulação e resistência de termos africanos como apelido e sobrenomes de pessoas desde o período do tráfico de gentes. Esse processo se deu de variadas formas. A primeira delas é que muitas vezes etnônimos ou termos de procedência africanos eram relacionados aos nomes concedidos aos africanos ou afrodescendentes por hetero ou autoidentificação (AGOSTINI,2008). Por exemplo: os termos Cazumbá, Congo, Cabinda, Zulu, Mulungu foram relacionados aos novos nomes de africanos ou afrodescendentes pois eles podiam especificar melhor quem era aquele sujeito, sua origem étnica africana. Tal encadeamento poderia ser acionado pela própria pessoa (sobretudo se liberta e ávida por possuir um sobrenome, ser particularizada através de um termo ou mesmo poder transmitir uma marca nominativa a seus descendentes); por indivíduo ao seu redor, como seu dono ou alguém que estava a sua caça e necessitasse ceder mais detalhes nominativos sobre indivíduo.

Identificar no presente o exato significado de termo africano quando agregado ao nome é um desafio para quem indicia da contemporaneidade os rastros desse passado. Um termo de procedência às vezes parece apelido e outras sobrenome. Mas quem e como o teria concedido?  Cabe a nós historiadores, a partir das fontes indiciadas até o momento, manifestar as possibilidades confrontadas até o presente.  

Nos documentos da expedição de Francisco José Martins na caça pelos aquilombados do Catucá, em 1829, para alguns escravizados só foi citado o nome e a quem pertencia. Para outros, havia o nome e um termo que podia ser o da procedência. José Canatu, José Angico, José Mobunga, João Pataca, Leandro Cazumbá (DANTAS, 1988).

Sabemos que a prática de agregação de etnônimos a nomes não se restringiu às Américas portuguesas, em colônias inglesas verificou-se a escolha pelo uso de etnônimo enquanto nome ou parte dele. Como ressalta Hall sobre escravizados na Louisiana:

“[...] Alguns escravos crioulos adotavam uma designação étnica africana como seu nome, ou parte do seu nome, como um modo de identificação com a etnia. Existe o caso de um escravo criolo, Joseph Mina, que adotou o nome étnico dos escravos minas que o criaram. Alguns outros nomes incluíam designações étnicas africanas: por exemplo, Édouard dit Kanga, Felipe alias Bambara, Louis Kiamba, Senegal e Maniga. O caso mais surpreendente é o de François dit Congo, um escravo filho de pai branco e mãe mestiça de quatro anos que foi vendido em 1817 com a sua mãe mulata sob a condição de que ambos fossem libertados imediatamente, ainda que fosse ilegal libertar qualquer pessoa menor de 30 anos naquela época. Temos aqui um crioulo de segunda geração que era três quartos branco com uma designação étnica africana como parte do seu nome (grifo nosso). Mas esses casos são raros o suficiente para poderem ser ignorados no cálculo.” [HALL. Gwendolyn Midlo, 2017, p.109].

Os Cazumbás então são caso mais raro ainda.  Termo não restrito a escravizados ou egressos do escravismo apesar de ter sido etnônimo em escravizado, tem circulado no Brasil nomeando pessoas de diferentes lugares sociais desde o século XIX como apelido e enquanto sobrenome. A delonga deste termo em nomes demonstra a possibilidade de determinado etnônimo incorporar-se à cultura da diáspora, alcançar significados variados que às vezes aludem a uma origem africana ou são reconfigurados com outras experiências simbólicas e culturais. De todo modo tais vocábulos se tornaram africanismos e pedem inquirição das variadas conjunturas que os fizeram tão populares na cultura das diásporas e influenciaram o léxico gramatical e cultural do país.

Samba, mandinga, rebolo, banguela, cafundó, bamba, mané, timbu foram etnônimos que emaranhados na sociedade e cultura modificaram significados e podem ser classificados enquanto africanismos. Samba é o ritmo mais popular do Brasil. Rebolo é um instrumento percussivo utilizado também no Samba. Banguela é uma pessoa sem dentes. Cafundó é um lugar longe. Bamba é alguém com autoestima um tanto elevada. Mané é alguém considerado bestial. Timbu, é um gambá (também etnônimo africano) onívoro da família do Canguru. Mandinga tem entre uma de suas definições a que diz respeito a “feitiço” de origem africana. Alguns desses termos continuam sendo etnônimo, topônimo ou antropônimo no continente africano. Estes são só alguns exemplos de como etnônimos africanos foram incorporados no senso comum. Para muitos não se sabe a relação significativa entre o termo que um dia nomeou escravizados e a acepção consagrada na contemporaneidade.

Alguns etnônimos foram apresentados sob a ressalva de serem mais específicos. Cazumbá, por exemplo, termo protagonista desta dissertação. O vocábulo enquanto etnônimo encontra-se grifado de diferentes maneiras devido aos processos de encontro entre a língua materna e colonizadora, a saber: kimbundu e português. De kazumba, casumba, cazumba a cazumbá sugerimos que o termo em Pernambuco apareceu enquanto etnônimo em escravizados, agregou significados simbólicos e representativos de África na diáspora e tornou-se um africanismo que indica no presente antropônimo, topônimo e manifestações culturais variadas ao longo do Brasil. Todas elas apontam para a África centro-oriental.

O termo cazumbá, originalmente kazumba, apresenta o prefixo “ka”, que indica diminutivo. Em português é modificado para “ca”.  O significado de zumba está agregado aos seres divinos que habitam terras prósperas e vivas. Cazumbá, por sua vez, é um ser eminentemente fantástico entre espíritos e animais que compartilha o mundo com os vivos. Outros vocábulos pertencentes a este grupo são zumbi, zambi, zumbaranda (ou nzumba, ganga zumba). O significado do primeiro (zumbi) é uma tanto similar ao de cazumbá. Está relacionado a criaturas espirituais, misteriosas ou fantásticas que compartilham o mundo com os vivos e mixam entre animais e humanos. Podem ser espíritos que vagueiam pela noite e brincam de assustar os lares.

Em África, as palavras supracitadas estão fortemente associadas a aspectos espirituais. N’ zambi, por exemplo, diz respeito a pessoa ou ser espiritual mais velho de respeito, em geral do sexo feminino. O “n” prefixal no quimbundo é usado para nomes abstratos. As palavras deste grupo etnolinguístico foram bem incorporadas na cultura da diáspora e seus significados tem estreitas relações com os antecedentes africanos. No Brasil, compõem o panteão de nkisis, inquisses ou inquices (o vocábulo significa receptáculo em quimbundo) e são entidades de culto, como os orixás, em candomblés de nação Angola.

Algo parece elucidativo: no século XVII, em período colonial, este vocábulo já era conhecido como procedente da África. Gregório de Matos cita um “pae Cazumbá” em poema (REBELLO,1882). Associa-o a comportamentos libidinosos e a outras pessoas pretas, possivelmente escravizadas. Em meados de 1794, em Lisboa, uma peça musical denominada “A vingança da Cigana” (CALDAS; MOREIRA, 1794), de parceria luso-brasileira, apresenta oito personagens pobres, um deles chamado Cazumba. Também este personagem está associado a estereótipos africanos depreciativos. Daí para frente, as pistas da existência do termo na diáspora, seja enquanto etnônimo ou nome próprio ampliam. Enquanto etnônimo, os escravizados são provenientes da África central. Como sobrenome e apelido, o termo aparece em indivíduos que não necessariamente nasceram em África e podem ou não ter alguma ascendência familiar e/ou cultural com o continente. Além disso, encontramos na contemporaneidade o termo a intitular nomes de restaurantes, tipo dança, nome de banda, grupos de teatro, arte e lazer, a personagem em manifestação cultural, nome de rio, reserva extrativista.

Durante o XIX pernambucano, alguns sujeitos foram apelidos de Cazumbá, entre eles um capitão da Confederação do Equador (1824), um senhor de engenho conhecido na província e alguns egressos do escravismo. A coisa em comum entre eles era o nome José, não a origem étnica. A ampla difusão do termo africano enquanto apelido para Josés indica a hipótese de que o corriqueiro nome José esteve associado a um termo africano tão regular culturalmente quanto ele (QUEIROZ,2020). O fato desemboca tanto na possibilidade de pessoas terem agregado o apelido ao sobrenome de família, sobretudo as mais abastadas, bem como indivíduos sem sobrenome até determinado momento optarem por agregar nome de engenho trabalhado ao nome de família, como já evidenciaram algumas clássicas pesquisas historiográficas (SCHWARTZ,1988). 

Manutenção do termo nominativo Cazumbá em Pernambuco
Durante pesquisa, evidenciamos entre 1823 e 2018 uma diversidade de casos contendo pessoas nomeadas (apelido ou sobrenome) pelo termo cazumbá em Pernambuco. Tal termo foi/é também encontrado em estados como Bahia, Paraíba, Rio de Janeiro, São Paulo, Rondônia, Paraná, Amazonas e tem se constituído entre alguns Cazumbás pernambucanos que todos os Cazumbás do Brasil são familiares. Entretanto, um dos dados que mais chamou atenção no progresso da pesquisa foi o não pertencimento dessas pessoas a uma mesma linhagem familiar. E mais: elas não estavam restritas a uma única classe social. Militares, traficantes de gente, escravizados, aquilombados, gatunos e mais contemporaneamente agricultores e trabalhadores rurais foram verificados com o termo no sobrenome.  
Em meados do início do século XX, documentos foram perpetuamente indicando pelo menos três grupos familiares Cazumbás em Pernambuco, principalmente na Região metropolitana do Recife e Zona da Mata Norte que se perpetuam até o momento presente sem que ainda seja afirmado o elo familiar entre os três. Do mesmo modo que nem todos os Silvas são parentes, os Cazumbás ao longo do território brasileiro também não tem parecido ser. Através de entrevistas orais, percebemos que a despeito das evidências de fontes escritas, há constituições de narrativas que declaram afirmação identitária e elo familiar a partir do nome, ainda que muitos cazumbás nunca tenham sido apresentados entre si. Com a finalidade de estreitar os elos, encontros e memórias, pessoas que carregam o sobrenome Cazumbá criaram página em rede social, encontro em família e nesse bojo, Cazumbás de Pernambuco tem se conectado com Cazumbás em torno do Brasil, maiormente os baianos, referindo-se a eles como “primos”. 
Várias foram as tentativas de acabado o escravismo apagar os rastros de África na diáspora. Pelo viés da negação, silenciamento ou subalternidade, coisas que remetem África chegaram ao senso comum como não importantes ou fortes o suficiente. Registra-se aqui a falácia deste discurso. O termo Cazumbá, como diversos do grupo banto, são diariamente falados, escritos. Ainda que tentassem apagar nomes de África, identidades africanas foram e continuam sendo reconstituídas na diáspora, por afrodescendentes ou não. 

Referências
Graziella Queiroz é graduada e mestra em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
Manoel do Nascimento é graduado em História e mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco.

AGOSTINI, Camilla. Africanos e a formação das identidades no além-mar: um estudo de etnicidade na experiência africano no Rio de Janeiro do século XIX.  História & Perspectivas, Uberlândia (39): 241-259, jul.dez.2008.
CALDAS, Barbosa; MOREIRA, Antonio Leal Moreira. A vingança da cigana: drama joco serio de hum só acto, para ser representar no Real Theatro de São Carlos pela Companhia Italiana, oferecido ao público por Domingos Caporalini no dia do seu beneficio – Anno de 1794.
HALL. Gwendolyn Midlo. Escravidão e Etnias africanas nas Américas: restaurando os elos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017.
PESSOA DE CASTRO, Yeda. Falares africanos na Bahia. Um vocabulário afro-brasileiro, 2ªed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras: Topbooks Editora, 2005.
QUEIROZ, Graziella Fernanda Santos Queiroz. A Dimensão Atlântica do Cazumbá: Práticas nominativas, identidades e africanismos em Pernambuco (c.1823-2018). Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História. Dissertação de Mestrado,2020.  
REBELLO, Pereira Manuel. Obras Poéticas De Gregório de Mattos Guerra. Precedida da vida do poeta. Tomo I. RJ: Typographia Nacional, 1882, p.94.
SOARES, Mariza Carvalho de. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550- 1835.  SP: Cia. das Letras, 1988
WEIMER, Rodrigo. Os nomes da liberdade. Experiências de autonomia e práticas de nomeação em um município da serra rio-grandense nas duas últimas décadas do século XIX. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação. Programa de Pós-Graduação em História. Dissertação de Mestrado, 2007.

2 comentários:

  1. Olá, Graziella Queiroz e Manoel do Nascimento! Boa tarde!

    Foi um prazer conhecer o texto de vocês. Confesso que não conhecia nada sobre o assunto, e ao mesmo tempo fiquei instigado. Tenho a algum tempo me voltado as questões lexicais, língua(gem) e poder. Inclusive pensar nas atitudes: apagamento, silênciamento, e resistências. E com a leitura do vosso texto puder perceber imbricações a movimentos eurocêntricos.
    Não tenho nenhuma questão a fazer, mais parabeniza-los!

    Respeitosamente, abraços!

    Ayrton Matheus da Silva Nascimento.

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  2. Ayrton agradecemos imensamente o seu comentário. E esperamos alegremente que nosso texto tenha estimulado sua curiosidade epistêmica.
    Atenciosamente,
    Graziella Queiroz e Manoel do Nascimento

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