PRÁTICAS MÁGICAS,
CURANDEIRISMO E REPRESSÃO RELIGIOSA NA AMÉRICA PORTUGUESA: O ENSINO DE HISTÓRIA
E A VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO NO GRÃO-PARÁ (1763-1769)
“O livro da Visitação do Santo Ofício da
Inquisição ao Estado do Grão-Pará [1763-1769]” reúne documentos que foram
produzidos no século XVIII quando a sociedade paraense se insere nos Autos da
Visitação. Por largo tempo a concepção de cultura foi elitista e de forma
crescente a noção de “civilização” foi assumindo espaço na sociedade ditada
pelo pensamento europeu. Contando com o arcabouço teórico-metodológico
fundamentado na nova História Cultural, analisamos algumas confissões que são
reveladoras do “cuidado religioso” europeu com o “novo cristão da terra” –
pretos, indígenas, mamelucos, mulatos, libertos ou escravos são inquiridos
segundo denúncias por superstição, curandeirismo e/ ou benzimento do “mao
olhado”, do “quebranto”, dos “bixos” e “sevandijas”. Refletindo sobre a
necessidade de aliar a produção do conhecimento ao ensino de História, propomos
a utilização de fragmentos documentais do livro nas aulas de História do Brasil
na Educação Básica.
A Lei 11.645 de 10 de março de 2008
estabelece a obrigatoriedade dos estudos – no ensino médio, públicos e privados
– da história e cultura afro-brasileira e indígena. Considerando o Art. 26-A do
§ 1º, que aponta a necessidade de inclusão dos diversos aspectos da História e
Cultura que caracterizam a formação da população brasileira com o compromisso
de dar contornos as suas contribuições nas áreas sociais da História do Brasil,
nosso objetivo foi, pois, conferir visibilidade aos registros e imagens daquilo
que se constitui a sociedade em formação colonizadora, abordando dores e
ressentimentos, as diferentes formas de sobrevivência e resistência e os
reflexos de submissão de uma população cativa, negra, cafusa, mameluca e
“mulata”. Para este execício, analisamos alguns registros coletados pela
Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará [1763-1769]. Os
registros documentais presentes no Livro da Visitação apresentam ricas
informações acerca dos povos, comportamentos, costumes e cotidiano da população
paraense do século XVIII. A obra, Fonte Impressa organizada por Amaral Lapa,
trouxe a lume denúncias e confissões por práticas mágico-religiosas como o
curandeirismo, aspectos que as visitações anteriores não tinham destacado. A
pesquisa PIC (2017-2018) foi instrumentalizada para aplicabilidade na Educação
Básica no ensino de História, possiblitanto o planejamento de aulas as quais
foram realizadas junto aos alunos do 7º ano da Escola Estadual Curitiba do
municipio de Paranavaí/PR, como parte da disciplina de Estágio Supervisonado no
Ensino Fundamental II do Curso de História da UNESPAR – campus Paranavaí.
O
plano de aula aplicado com os alunos do 7º ano do Ensino Fundamental
concernente ao assunto apoiou-se em fragmentos documentais do “Livro da
Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará [1763-1769]’’
[LAPA, 1978]. Alguns relatos contidos no livro foram selecionados para serem
analisados durante as aulas, como o caso do denunciado Índio Antônio, acusado
de práticas de curandeirismo a base de beberagens de rapas de cascas e raízes
de árvores e rituais de origem; e da inquirida Domingas Gomes da Ressurreição,
mameluca, ao qual confessou perante a mesa da Visitação ter aprendido orações
com sua ex senhora Maria de Barros para a cura do “quebranto”, ‘Erizipela” e
“ar nos olhos”. A pesquisa aplicada em sala de aula contou com o arcabouço
teórico-metodológico fundamentado na Nova História Cultural. Para a elaboração
das aulas, buscamos apoio em leitura de autores pesquisadores da História da
Cultura no campo do imaginário e das mentalidades com Laura de Mello e Sousa e
Ronaldo Vainfas, entre outros. O embasamento teórico a partir destes autores
mostrou-se fundamental para a compreensão acerca das relações multiétnicas e
conflituosas entre o europeu, o indígena e o africano durante o processo de
colonização e formação social.
As aulas recairam sobre as seguintes
produções didática: “Estudar História; Idade média e idade moderna” dos
autores Reinaldo Seriacopi e Gislaine de
Azevedo [2015] e “Vontade de Saber História” dos autores Marco Pellegrini,
Adriana Dias Machado e Keilla Grinberg [2016], ambos livros do 7º ano do Ensino
Fundamental, série cuja temática proposta foi abordada. A escolha de tais
livros didáticos se deram pelo fato de abordarem capítulos que nos ofereciam
receptividade para a temática desenvolvida na pesquisa. Apesar da ínfima
abordagem sobre a presença do Santo Ofício da Inquisição na América Portuguesa,
os livros propõem questões como o choque cultural entre os dois mundos, as
transformações ocorridas na Europa moderna (principalmente no âmbito religioso)
e a ação do tribunal da Inquisição durante o movimento da Contra-reforma –
momento em que a igreja católica defendia-se com veemência da crise
desencadeada pelo movimento da reforma no século XVI. Como bem aponta a
historiadora Daniela Buono Calainho:
“O início dos chamados Tempos Modernos foi de
grande renovação espiritual, caracterizado por uma ofesiva da Igreja romana em
deter o avanço protestante através da reafirmação de seus dogmas e sacramentos,
da hierarquia eclesiástica, da disciplina do clero e do combate a resquícios de
paganismo, superstições e comportamentos sexuais vistos como desviantes.
Desenhava-se, assim, um amplo projeto de cristianização das massas, de
reordenação social e moral, ancorado nos valores legitimamente cristãos [...]”
[Calainho, 2005, p.62].
Nesse sentido, o avanço do protestantismo
levou a igreja católica, em especial nos países ibéricos, a refirmar ainda mais
os antigos dógmas católicos e também a combater comportamentos tidos como
heresias que se classificavam em: judaizantes, bígamos, sodomistas, mouriscos,
luteranos, feiticeiros – um reordamento religioso, moral e social, que
encontrou na Inquisição uma grande aliada. A Inquisição surge ainda na Idade
Média com o objetivo de conter o avanço das heresias, em especial a do
catarismo no Sul da França. Mas foi na Época moderna, principalmente nos países
ibéricos, que a Inquisição e o estilo inquisitorial de justiça atingiram seu
auge. Nas Palavras de Novinsky [1988, p.21]: “Foi na Espanha e Portugal,
durante a época moderna, isto é, nos séculos XVI, XVII e XVIII que a inquisição
alcançou seu apogeu”. Vainfas [1997] aponta a perseguição aos Cristãos-novos -
judeus convertidos ao catolicismo suspeitos de praticarem judaísmo em segredo -
como um traço peculiar das inquisições ibéricas, respondendo pela maioria dos
processos e execuções entre o último quartel do século XVI e segunda metade do
século XVIII. Já em meados do século XVI o Santo Ofício português estenderia
seus braços à América portuguesa com o objetivo de investigar comportamentos
tidos como desviantes à fé católica. A atuação da inquisição portuguesa em
território luso brasileiro se deu através da presença de algumas visitações no
intuito de investigar acusações de heresias tendo como pricipal alvo os
cristãos-novos. Mas além destes, o Santo Ofício na América Portuguesa também
perseguiu práticas tidas como mágico-religiosas, tais como adivinhações,
feitiços, bezeduras e curandeirismo. O Santo Ofício na conjuntura da Europa
moderna também “empenhar-se-ia na depuração das mentalidades populares, na
demonização dos sincretismos religiosos [...]”. [VAINFAS, 1997 p. 196].
O
historiador Mario de Sá [2011] aponta que as práticas de feitiçaria e magia
eram praticadas no Brasil antes mesmo da chegada de europeus e africanos e
tiveram continuidade com estes. As práticas de magia e feitiçaria serviam à
diversos propósitos: à “resistência e a resignação, a doença e a cura, o amor e
o ódio, e, tantos outros fins, a feitiçaria se apresentava como explicadora,
solucionadora ou lenitivo no cotidiano dessas sociedades ” [SÁ, 2011, p. 56].
Nos oitenta primeiros anos de colonização, magia e religiosidade popular
mostravam-se semelhantes tanto na metrópole portuguesa quanto na colônia. Mas
logo cedo já se delinearia traços específicos devido a diversidade do meio
ambiente e das estruturas econômicas e sociais. A população da colônia
cultuaria uma religiosidade sincrética, mesclada de crenças européias,
ameríndias e africanas resultante da própria situação colonial. Nas Palavras de
Laura de Mello e Sousa:
“[...] embora apresentando traços
marcadamente europeus nas práticas mágicas e religiosas, a colônia brasileira,
ao findar seu primeiro século de existência, já revelava face pluricultural,
que se consolidaria durante o século XVII e se acirraria no século XVIII. As
sucessivas ondas migratórias de colonos portugueses, os hereges e feiticeiros
que a inquisição despejou sobre solo colonial com grande frequência durante
todo o século XVII trabalhariam no sentido da manutenção das persistências. O
tráfico negreiro cada vez mais intenso, o contato constante com as tribos
indígenas, a invasão de holandeses calvinistas, a crescente consciência da
condição colonial, por outro lado, tornariam sempre mais diverso o complexo
mundo da religiosidade popular e das práticas mágicas no Brasil” [SOUSA, 1993,
p. 56].
Povos indígenas e africanos tiveram que
reformular suas culturas, seus mitos, suas crenças e ajustá-las à uma nova
realidade imposta pelo colonialismo. “[...] uma vez contatadas e submetidas
pelo europeu, as culturas ameríndias jamais seriam as mesmas”, diz Ronaldo
Vainfas [1995] ao tratar a respeito dos impactos do colonialismo nos rituais
tupis do século XVI. Práticas mágicas que eram comuns na Europa, ganhariam,
neste sentido, contornos específicos na América portuguesa. Segundo Assis
[2008], tais práticas não seriam apenas costumes herdados da tradição europeia
medieval ibérica. Seriam, sobretudo, “o
reflexo da mistura destes hábitos com as influências recebidas pelas tradições
da religiosidade ameríndia e africana”. A miscigenação étnica tornar-se ia
também miscigenação religiosa. A colônia portuguesa serviu de palco para o
contato entre grupos de crenças diversas, palco de “circularidades culturais”
[Assis, 2008, p. 2 - 4].
Para além da miscigenação, no convívio se
construiram hábitos, costumes, comportamentos que alinhavam valores diversos.
As práticas mágico-religiosas visavam a resolução de questões cotidianas.
Adivinhações, magias com fins amorosos, cura de doenças, dentre outras, eram
práticas difundidas no cotidiano colonial como forma encontrada pelos
indivíduos de resolverem anseios pessoais e problemas cotidianos.
Nas palavras de Assis, “Não eram raros os
oferecimentos e práticas mágicas para recuperar ou retirar a saúde de alguém,
trazer riquezas, gerar ruína, amaldiçoar casais ou pessoas, conquistar e manter
fiel o homem ou a mulher amada por toda a vida” [Assis, 2008, p. 5]. Se na
Metrópole a igreja católica se caracterizava pela rigidez da ortodoxia, na
territorialidade de além-mar, ela adquirirá caracteristicas específicas; será
uma religião influenciada pelos diversos grupos que formam a sociedade
brasileira: será popular. No entanto, o estreito contato das religiosidades dos
três continentes perderá sua harmonia com a chegada da Visitação do Santo
Ofício, com o olhar vigiante de seus representantes.
A primeira Visita do Santo Ofício foi à
capitania da Bahia [1542]; depois a capitania de Pernambuco [1547]; no século
seguinte [XVII] na capitania do Rio de Janeiro e na capitania do sul. Somente
em 1763, século XVIII é que se estabeleceu no Grão-Pará e Maranhão a visita dos
funcionários da Inquisição; Visitação que permaneceu até 1773, com o objetivo
de vigiar, punir, condenar indivíduos que manifestassem atitudes suspeitas
contra a fé cristã; torná-los corpos “dóceis” [Foucault, 1987].
Esta última Visita do Santo Ofício à
capitania do Grão-Pará e Maranhão foi o base da pesquisa, estudo e trabalho
junto aos alunos do 7º ano do Ensino Fundamental. Analisamos a fonte impressa e
consideramos que no momento da Visitação a capitania do Grão-Pará, dentre as
práticas mágicas denunciadas, aquelas ligadas à cura são umas das que mais se
manifestaram na conjuntura da Visitação paraense do século XVIII, cujos os
resquícios se fazem presentes ainda hoje com a presença das benzedeiras ainda
no século XXI; exemplo significativo da perpetuação das práticas populares.
O rol de depoimentos ao visitador Giraldo
José de Abranches relacionadas a práticas mágico-religiosas na capitania do
Grão-Pará sugere com eloquência o quanto essas práticas se achavam enraizadas
na vida cotidiana das populações na colônia no século XVIII. Diante da
diversidade de práticas mágicas recorrentes no cotidiano colonial, o
objetivamos fundamentar as aulas nas
práticas de curandeirismo, uma vez que acreditamos ser um tema que certamente
se inseria no universo cultural de muitos alunos por ser práticas ainda
recorrentes nos dias de hoje em muitas regiões do Brasil.
Laura de Mello e Sousa [1986] constatou que
só na Visitação do Grão-Pará foram apurados, do total de 47 culpas, 21 casos de
feitiçaria e nove de curas mágicas. Nos registros da Visitação ao Estado do
Grão-Pará entre 1763-1769, em vários momentos aparecem confessores e
denunciantes relatando práticas que foram herdadas de algum familiar ou
apreendidas com alguém estranho. Com frequência se registra os arrependimentos
de ter chamado uma índia, mameluco ou preto para proceder a algum tipo de
benzimento. Arrependimento que se revela por saberem que vai contra os
princípios da Santa Madre Igreja. Laura de Mello e Sousa assevera que em sua
pesquisa do livro “Desclassificados dos ouro”, chamou-lhe a atenção, de forma
marcante, as denúncias de feitiçarias e
feiticeiros negros entre a população pobre e marginalizada de Minas Gerais.
Tais comportamentos aparecem nas Devassas Eclesiáticas como práticas cotidianas
impregnadas de magismo e bruxarias.
Ainda apoiados em Laura de Mello e Sousa
[1986], esta considerou os africanos,
junto com os indígenas e mestiços os grandes curandeiros do Brasil colonial,
dado a habilidade que tinham com a manipulação das misturas de ervas “e de
procedimentos rituais específicos a seu universo cultural” atrelando - se “ao
acervo europeu da medicina popular”. [SOUSA, 1986, p. 122].
Segundo Mario Sá [2009], a vida no Brasil
colonial, as adaptações com o ecossistema hostil não transcorreram de forma
tranqüila. As adversidades climáticas, as doenças resultantes do encontro entre
os três continentes, o trabalho compulsório imposto, somado a escassez de
profissionais da medicina e hospitais contribuíram para a precariedade da saúde
da população colonial. As doenças não poupavam nenhuma classe social; negros,
índios, brancos e mestiços, pobres ou ricos, “nem mesmo os profissionais de
saúde”. [Sá, 2009, p.326]. Sendo assim,
a importância do curandeiro durante o período colonial é estranho, pois a
escassez de médicos e hospitais por si só já explicaria tamanha força das
práticas curativas que se apoiavam em saberes europeus, ameríndios e africanos.
Muitos curandeiros negros, assim como os indígenas, utilizavam em rituais de
cura por exemplo, elementos ligados ao culto cristão como a água benta,
orações, terços, cruzes, invocação de santos católicos, dentre outros -
revelando um “sincretismo” mágico-religioso e cultural. Parcela significativa
destes curandeiros foi objeto de perseguição por parte do tribunal
inquisitorial português tidos como
feiticeiros.
Através dos documentos e com o embasamento
teórico de autores aqui citados, entre outros, foi possível através das aulas
demonstrar aos alunos o papel social destes praticantes da magia da cura na
conjuntura da Visitação do século XVIII à América portuguesa; a figura do
curandeiro como sujeito histórico e sua relação entre os diversos segmentos da
sociedade - livres, forros, escravos, indígenas e europeus -; a coexistência e
as interações culturais entre práticas africanas, indígenas e européias; o
papel do negro, mulato, escravo ou “forro”; a interação do indígena com um
ecossistema que tão bem conhecia e ainda, as superstições e os medos medievais
que pra cá se transferem juntamente com o colonizador europeu. Todo esse
processo de interação constituiu fatores decisivos que delineiam o perfil
cultural da sociedade brasileira. A análise de fontes documentais presentes no
Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará
(1763-1769), quando a sociedade paraense se insere no nos Autos da Visitação no
contexto escravista do século XVIII, traz à tona os sujeitos formadores de
nossa sociedade e nos remete a sociedade atual, na qual encontramos reflexos do
passado colonial em diversos comportamentos “sincréticos”. Abordado em sala de aula, foi possível
salientar aos alunos a vigência de práticas como as de curandeirismo ainda no
século XXI; práticas culturais ainda muito presentes em nossa sociedade atual.
Alguns alunos teceram comentários considerando a importância do que fora dito
por meio de relatos e testemunhos no que se refere tererem presenciado ou
conhecido pessoas que fizeram uso de certas práticas que no ambiente colonial
seriam consideradas mágicas e objeto de perseguição por parte do Santo Ofício
português.
A aluna “A” relatou: “minha mãe falou que
quando a gente morava no Morumbi ela conhecia um senhor chamado Sebastião que
era benzedor. Ele benzia as pessoas no fundo da casa dele. Minha mãe ia com
nossa família e ele benzia com agua benta e fazia orações”. A mesma disse ainda
que quando alguém da sua família não podia comparecer a casa do senhor, sua mãe
colocava o nome desta pessoa para ele orar por ela. A aluna também fez uma
breve descrição acerca dos elementos que constavam no ambiente em que o senhor
benzia: ‘tinha tipo um santuário com velas, santos e água benta’.”
A aluna “L” relatou: “Eu nunca fui à uma
benzedeira. A única coisa que eu sei é que meu pai procurou uma benzedeira há
quatro anos atrás para conseguir para de beber. Ele compareceu na casa da
benzedeira por várias vezes, e foi indo lá que meu pai conseguiu parar de
beber.”
A aluna “B” relatou: “Minha mãe disse que a
sua bisavó era benzedeira e que o lugar era um chiqueiro e lá ela benzia
sapinho, ‘cobreiro’, ‘vento-virado’ e “mal olhado” em bebês e até em idosos.
Ela também disse que conhecia outra benzedeira, uma senhora chamada Dona Maria
que recebia as pessoas para benze-las em um cômodo que ficava atras de sua casa
de morada e lá tinha várias imagens e esculturas de santos. Ela benzia pessoas
que tinham ‘espinhela caída’, ‘mal olhado’, ‘quebranto’ entre outros. Minha mãe
também disse que por duas vezes me levou a essa benzedeira aos dez meses e aos
quatro anos de idade porque eu estava com ‘quebranto’. A benzedeira mandava eu
sentar em uma cadeira e fazia umas orações meio estranhas de entender e depois
com alguns ramos de folhas fazia o sinal da cruz.”
A aluna “G” também contribuiu com um relato:
“minha mãe cuidava de uma menina que quando ela dormia acordava assustada e a
patroa da minha mãe acreditava que era ‘mal olhado’ e mandou minha mãe levar
ela em uma benzedeira”.
O objetivo da abordagem foi demonstrar-lhes como essas práticas
populares atravessaram a História do Brasil, da chegada dos colonizadores
portugueses e africanos escravizados até a atualidade e que estas práticas e
representações ligadas à cura têm caráter histórico e cultural em nosso País,
fruto da convergência das culturas europeias com aquelas praticadas pelos
nativos e pelos povos africanos escravizados. Tais práticas fazem parte de um
conjunto de comportamentos, costumes, crenças e valores que foram enriquecidas
pelas regionalidades geográficas do ganhando transformações que hoje se
constitui patrimônio cultural da sociedade brasileira. Uma herança colonial que
nos permitiu um debate e reflexões atuais para além do passado colonial. Um
debate que mostrou o quanto somos herdeiros do passado colonial e o quanto essa
herança está presente em nossos valores, comportamentos e práticas populares
culturais herdados e construidos a partir do encontro multiétnico de três
continentes.
Referências
Tainá Guanini de Oliveira é graduada em
História pela UNESPAR [Campus
Paranavaí]. Desenvolveu projeto de Iniciação Científica/ PIC nos
períodos de [2017- 2018] e [2018- 2019] sob orientação da Prof. Dra. Eulália
Maria A de Moraes. Participou do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (Pibid) no período de [2016- 2018];
e-mail:tainaguanini@gmail.com
Eulália Maria A de
Moraes é professora doutora do Curso de História da Universidade Estadual do
Paraná – Campus de Paranavaí. Professora
permanente do Mestrado Profissional em História – ProfHistória e
professora convidada da PRPPG em História Pública da UNESPAR – Campus de Campo
Mourão; e-mail: eulaliamoraes@hotmail.com
AMARAL, José Roberto do. Livro da Visitação
do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis:
Editora Vozes, 1978 (Coleção História brasileira). [fonte impressa]
ASSIS,
Angelo Adriano Faria. Feitiçarias da colônia. Magia e práticas de feitiçaria na
América Portuguesa na documentação do Santo Ofício da Inquisição. Mneme -
Revista de Humanidade. UFRN. Caicó (RN) v.9 n º 24, set/out. 2008. [artigo]
AZEVEDO, Gislaine de. & SERIACOPI,
Reinaldo. Estudar História: Idade Média e Idade Moderna. Projeto Teláris.
Ensino Fundamental II. Pinheiros, São Paulo: Editora Ática, 2015. [livro
didático]
CALAINHO. Daniela Buono. Jesuítas e Medicina
no Brasil Colonial. Tempo, Rio de Janeiro, nº 19, pp. 61-75. [artigo].
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento
da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. 288p. [livro]
NOVINSKY, Anita. A inquisição. São Paulo: Brasiliense,
1982. [livro]
PELLEGRINI, Marco Cesar; DIAS, Adriana
Machado; GRINBERG, Keilla. Vontade de
Saber História. Ensino Fundamental, 7º Ano. Londrina, Pr: Editora FTD Educação,
2016. [livro didático]
SÁ, Mario. Feitiçaria de ganho no Mato Grosso
setentista. Mneme – Revista de Humanidades, 11 (29), 2011 – jan/julho. [artigo]
SÁ, Mario. O Universo Mágico das Curas: o
papel das práticas mágicas e feitiçarias no universo do Mato Grosso
setecentista. REVISTA HISTÓRIA, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro.
v.16, n.2, abr.-jun. 2009, p.325-344. [artigo]
SOUSA, Laura de Mello. Desclassificados do
ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1986. [livro]
SOUSA, Laura de Mello. Inferno Atlântico:
Demonologia e colonização séculos XVI-XVIII.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993. [livro]
SOUSA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de
Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986. [livro]
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo
e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. [livro]
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral,
sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
[livro]
Olá, Tainá e Eulália!
ResponderExcluirAchei bastante interessante a proposta de vocês, e ainda mais sabendo que a mesma já teve uma aplicação prática de sucesso.
É sobre a prática que eu gostaria de levantar uma questão. Na mídia de massa temos a representação frequente de muitos personagens, como bruxas, curandeiros, que são apresentados das mais diversas formas - nem sempre em conexão com as pesquisas historiográficas. Neste caso, considerando um público adolescente, não houve questionamentos, ou mesmo confusão, por parte dos alunos acerca, também, de personagens do cinema e da literatura , em detrimento dos sujeitos reais trazidos pela sua pesquisa? De que forma vocês acham que essa relação entre o que é saber historiográfico e o que é mídia de massa, no que tange essas personagens, poderia ser explorada?
Muito obrigado!
Bruno Ercole
Muito obrigado!
Olá Bruno!
ExcluirNo que diz respeito as representações desses sujeitos históricos nas produções midiáticas não houve questionamento por parte dos alunos. Me recordo que nas discussões sobre o surgimento da Inquisição e o fortalecimento desta enquanto instituição (colocando em questão as inquisições medieval e moderna), alguns alunos mencionaram ter assistido os Filmes Joana d'Arc (1948) e O Nome da Rosa (1986) em aulas anteriores, filmes estes que, se utilizados em sala, podem produzir profícuas discussões. O primeiro, por exemplo, apresenta uma mulher a frente de seu tempo, agindo contra os padrões de comportamentos esperados pela mulheres da época; os mecanismos de repressão como o Santo Ofício da Inquisição, instituição encarregada do caso de Joana; a história desta; o contexto em que ocorreu o processo e a relação da igreja com os considerados hereges. Os filmes se constituem em uma importante ferramenta para o ensino de história desde que utilizados de maneira adequada, problematizada, de modo reflexivo e não de maneira isolada, mas juntamente com outros recursos. Uma produção cinematográfica pode contribuir para a desconstrução de esteriótipos, ao passo que também pode criá-los ou reforçá-los.
A ideia hegêmonica da época da mulher como um ser maléfico, perigoso, que possuia poderes mediante o pacto com o demônio foi introjetada pelos teólogos da igreja, expresso com eloquência em escritos de intectuais do campo da demonologia. Manuais inquisitoriais afirmam que a bruxa tinha pacto com o Demônio. . A perseguição às bruxas não se restringe a Europa. No Brasil, no período colonial, europeus identificavam feitiçaria, bruxaria nos rituais dos nativos e posteriormente nas religiões africanas.
Nos filmes, desenhos animados, e pronciplamente nos contos de fadas, a figuração da bruxa má sempre aparece, fruto do percurso histórico que associa a bruxa ao demônio. São aptesentadas estéticamente como velhas, feias, com verrugas no nariz ou perto da boca, voando em uma vassoura, morando em locais isolados. Na própria história, acusações são dirigidas ás mulheres pobres, analfabetas, viúvas, pois correspondiam aos esteriótipos da época, condizindo com a função de bruxa. Solidificou-se assim o esteriótipo de bruxa encontrado nas mídias. Na história, muitas das acusadas eram inocentes, condenadas por terem comportamentos distintos do padrão social da época; viviam no isolamento, era muito velha, pobre, viúvas e sem familia. A função de determinadas mulheres também era motivo de identificaçäo de bruxaria, como as curandeiras, rezadeiras parteiras e conhecedoras de segredos de ervas medicinais.
Herdamos modelos modelos que se ajustam aos planos etnocêntricos do pesamento europeu; costruiu-se imagens e imaginarios a respeito da mulher, da religiosidade, da sexualidade e do corpo; instituiu-se métodos interrogatórios, perseguições e preconceitos a partir de modelos de comportamentos sociais. Isso foi um dos motivos que fez com que instrumentalizamos a pesquisa para aplicabilidade em sala de aula, com o objetivo de desconstrir algumas práticas de preconceitos e violência presente no comportamento de alguns alunos. Apresentamos sujeitos históricos marginalizados pelo Santo Ofício e procuramos auxiliá-los em relação à desconstrução de ideias ue divergem do respeito as diferenças. Sua pergunta me fez lembrar de aulas que desenvolvi com os alunos do 1 ano do Ensino médio ano passado como parte da disciplina de estágio supervisionado do 4 ano do curso de história. O tema das aulas era sobre o feudalismo, e dentro desse tema trabalhei em uma das aulas sobre os Vikings, devido meu gosto e interesse sobre os nórdicos. Um dos objetivos da aula era justamente refletirmos no intuito desconstruir alguns esteriótipos acerca do bárbaro escandinavo em algumas produções midiáticas, como por exemplo a vestimenta, e o uso do capacete córneo, através do saber histórico e pesquisas acadêmicas.
Atensiosamente,
Tainá Guanini e Eulália de Moraes
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ResponderExcluirConsiderando que a linha entre um curandeiro e um médico na época era tênue, acreditam que os curandeiros que eram acusados por práticas de suas culturas a Inquisição as razões por trás dessas denúncias eram por preconceito racista e religiosa? Visto que as práticas culturais eram provindas e/ou continuadas dos descendentes do continente africano.
ResponderExcluirO texto é incrível e a prática na sala de aula também. Parabéns!
Atenciosamente,
Adrienne Peixoto Cardoso.
Olá Adrienne! Obrigada!
ExcluirO que podemos constatar através da pesquisa e da análise das fontes é que no contexto colonial, as populações, dos diversos segmentos sociais, recorriam à essas práticas e praticantes com naturalidade, passando a enxergá-las com temor somente quando o Santo Ofício da Inquisição (desejoso em homogenizar as diferenças) as identificaram como crimes contra a fé. Senhores recorriam ás práticas de cura de africanos para curar uma enfermidade de algum familiar.Podemos perceber em muitas confissões e denúncias nos documentos de práticas ocorridas à 30, 40, até 50 anos atrás. O medo que o Santo Ofício introduzia na mente das pessoas fazia com que estas denunciassem pessoas até mesmo já falecidas. E quando observamos que a Visitação do Santo Ofício se preocupa com as práticas de cura, é por que as dificuldades aqui na América era de ordem material. Ou seja, as preocupações com a salvação da alma não era motivo de maior preocupação que a salvação do corpo. Os curandeiros, em especial os africanos e indígenas, supriam a absoluta carência de profissionais da saúde. Essas práticas eram motivos de preocupação por parte das autoridades eclesiásticas e do Estado, e o Santo Ofício era um importante instrumento para ambos na busca de submissão e disciplina. É interessante notar também, que em alguns documentos, também de outras visitações, muitas religiosidades africanas eram decritas como quilombo. E podemos notar que certas práticas religiosas de africanos e indígenas poderiam representar também um perigo para a manutenção da ordem escravista colonial, temido pelos grandes senhores, como é bem demostrado no livro Heresia dos Índios do Historiador Ronaldo Vainfas.
Tem um livro chamado "Médicos, medicina popular e inquisição:a repressão das curas mágicas em portugal no período iluminista" do autor Timothy Walker. Ele afirma que entre 1715 e 1755, de 304 processos mágicos, pelo menos 127 envolvia práticas de cuarandeirismos. Foi um périodo de "caça as bruxas" em Portugal, e coincidiu com um numero substancial de médicos licenciados nas fileiras do Santo Ofício. Havia, nesse sentido, uma política a favor dos profissionais da medicina integrados no Santo Ofício, agindo em conjuto com o clero com interesses em comum, no sentido de eliminar o curandeirismo supersticioso de Portugal.
Adrienne, penso que podemos trocar muitas ideias a respeito das nossas pesquisas. Sou apaixonada também pelo período medieval e adorei seu texto. Gostaria de parabenizá- la mais uma vez! Abraço!
Atenciosamente,
Tainá Guanini de Eulália de Moraes